O Cristo na cruz resplandece e o espírito liberta-se em forma de ave. Foto de José Santos
Pelo final da tarde de ontem, teve lugar a inauguração da
exposição de fotografia de José Santos, na galeria de Herman Mertens e Magda
Vervloet em Vale de Ferro, com muito público e a surpreendente participação
musical do jovem tenor Renato Santos. Chamado a apresentar a exposição,
contando com algum desconhecimento do fenómeno da “light painting”, preparei
algumas notas sobre este tema e sobre a fotografia de José Santos, que tentei
explicitar na ocasião.
A “light painting” é uma técnica fotográfica que consiste em
obter imagens através de fotos de longa exposição, movendo uma fonte luminosa
diante da câmara fotográfica (“light drawing, light graffiti”) ou movendo a
própria câmara (“camera painting”). À primeira vista, parece o contrário da
fotografia convencional, mas a “light painting” também trabalha temas e
assuntos concretos, exigindo abordagens muito precisas e mobilizando grandes
meios técnicos quando se trata, por exemplo, de reforçar os conteúdos emotivos
da cor em fotografias de paisagens ou monumentos, que requerem desde logo
condições extraordinárias de iluminação artificial.
O processo utilizado por José Santos enquadra-se mais na
“camera painting”, pois recorre sobretudo a movimentos da câmara e do zoom. À
noite ou num ambiente escuro, a câmara fotográfica torna-se pincel e as luzes
são utilizadas como as cores na paleta, para dar a ver diferentes aspetos da
realidade ou criar imagens totalmente abstratas. Na realidade, o processo da
“light painting” é tão simples de entender e fácil de executar que abundam, na
Internet, imagens de todos os tipos e para todos os gostos, desde a experiência
mais elementar às obras de autênticos artistas – como os norte-americanos Brian Hart, Eric Staller, Jason Page e Elizabeth Carmel, o argentino Arturo Aguiar, a canadense Tatiana Slenkhin, o francês
Julien Breton ( Kaalam), o japonês Tokihiro Sato e, naturalmente, o português
José Santos.
Um desenvolvimento do ato de fotografar (literalmente,
“escrever com luz”), a “light painting” aproxima a fotografia da pintura e da
performance. Ao longo do século XX, os artistas utilizaram criativamente os
meios da fotografia. O primeiro artista a explorar a técnica da pintura com luz
terá sido Man Ray, em 1935, e a novidade não escapou à curiosidade de Pablo
Picasso, que integrou algumas experiências com luz na sua vasta obra
multidisciplinar. Considerando que os desenvolvimentos da arte contemporânea
permitiram à fotografia tornar-se abstrata, entre outras coisas ainda ontem
inaceitáveis (como as espetaculares fotografias recortadas de Germán Gómez), não admira que o
fotógrafo se assuma cada vez mais como artista. A arte contemporânea
carateriza-se, sobretudo, pela articulação de linguagens artísticas, pela
interação de conceitos, espaços e metodologias – por muito pouco permutáveis
que pareçam. A “light painting” é hoje creditada ao mais alto nível (a
Photographic Society of America, por exemplo, dispõe de consultores para essa
área específica) e a vulgarização da fotografia, ao alcance do mero utilizador
de telemóvel, tem levado os fotógrafos a procurar cada vez mais o espaço das
galerias de arte para desenvolverem os seus projetos noutro patamar de
exigência e manterem um estatuto diferenciado.
No caso particular das obras de José Santos, apesar de se
assumir como autodidata da fotografia (1), sobressai imediatamente o sentido da
composição, tal como o entendemos na pintura, e o elaborado uso da cor através
da criteriosa manipulação da luz. Nos seus trabalhos abstratos, cujo melhor exemplo é a série "Luzes", predomina o diálogo das
formas e harmonia das cores, despontando e evoluindo com ritmo e força visual
no fundo negro – o nada de onde tudo emerge. Nos seus trabalhos mais
figurativos (séries "Cristos" / "Paixão", por exemplo), é clara a preocupação de ir além de mera representação, do visível
imediato, extraindo das formas efetivamente fotografadas algo mais que uma
simples imagem, o seu halo mítico, a sua energia própria, a sua luz.
E por aqui entendemos a coleção de imagens que integram esta
exposição, intitulada “Paixão” por abordar o momento crucial da paixão de
Cristo, a morte na cruz. Na sua origem latina, o termo “paixão” significa
“sofrer ou suportar uma situação difícil” mas usamos também este termo para
designar o sentimento de entrega total a uma pessoa, a uma atividade ou a um
ideal. O momento religioso que se aproxima, a Páscoa, os mais profundos
sentimentos humanos do autor, José Santos, e a sua autêntica paixão pela
fotografia, explicam o tempo e o modo desta exposição.
Simples cruzes, o símbolo máximo do cristianismo, grandes
cruzes de altar ou figurações de Cristo crucificado, as fotografias “pintadas
com luz” de José Santos destacam a convicção cristã de que Cristo é luz e
redenção. Da cruz vibrante de luz, faiscando no fundo da noite escura, à imagem
que parece contorcer-se na cruz ou acenar tristemente, vislumbra-se um complexo
percurso de emoções, um mapa para a via-sacra mais interior de cada um. E a
exposição de José Santos em vale de Ferro termina com uma proposta desconcertante,
nada canónica, irradiando luz para as consciências: duas imagens da
crucificação, lado a lado, uma no masculino e outra no feminino – evocando ao
mesmo nível mítico a Paixão da mulher, a pouco dias do seu Dia Internacional, 8
de março.
Alguns sites sobre LPP:
Light Paint Photography (EUA)
(1) - Autodidata da
fotografia, José Santos expõe individualmente desde 2009 (Museu Grão Vasco,
Viseu, 14 de fevereiro a 21 de março). Em Maio de 2009, mostrou o seu trabalho
em Seia, expondo depois no Museu de Lamego, Biblioteca Municipal de Cantanhede,
Museu de Resende, Museu Diocesano de Lamego, Espaço João Abel Manta em Gouveia,
Sede do Rancho Folclórico Pastores de São Romão, Posto de Turismo de Seia, Casa
da Beira Alta no Porto e Casa da Cultura de Seia – uma exposição intitulada "Luzes", que decorre até final de março 2013.
Mais fotografias de José Santos em olhares.sapo.pt.
Mais fotografias de José Santos em olhares.sapo.pt.
Vista parcial da inauguração
Algumas obras da série "Luzes" (2009):
Mariza, 2009
Guitarras, 2009
José Santos
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