quinta-feira, 20 de março de 2014

As viagens e as visitações de Alexandre Magno e Cristina Vouga

Vista parcial da exposição (sala principal)

Apesar das restrições orçamentais e desmotivação dos públicos, que têm desacelerado as dinâmicas culturais sobretudo no interior do país, algumas instituições privadas e organismos públicos continuam corajosamente a oferecer eventos culturais de relevo regional e até nacional, promovendo os valores locais e proporcionando espaços e momentos de interação e difusão culturais, perseguindo a melhoria dos padrões culturais das populações.
Esta constatação vem a propósito da já anunciada realização da ARTIS XII – Festival de Artes Plásticas de Seia, prometendo para maio e junho quase dois meses de exposições e iniciativas paralelas, da mostra de pintura a óleo de António Manuel Pires no Posto de Turismo de Seia e da excelente exposição de pintura e escultura de Alexandre Magno e Cristina Vouga patente nas galerias da Casa da Cultura até final de março.
Alexandre Magno e Cristina Vouga desenvolvem projetos artísticos diferentes com percursos artísticos em certa medida semelhantes: ambos nasceram em Angola na década de 1960, iniciaram os estudos artísticos superiores no Porto e concluíram licenciaturas em artes plásticas em Lisboa, começaram a expor os seus trabalhos sensivelmente pela mesma altura e têm estado muito presentes no centro-interior do país, expondo em Viseu, Tondela e Seia. Cristina Vouga participa atualmente noutra exposição conjunta, em Guimarães, com o pintor Alberto d´ Assunção – que expôs na Casa da Cultura de Seia em 2013.
Nas obras de Cristina Vouga (n. 1969) predomina o jogo de volumes, o modo como estes evoluem no espaço, e a invocação subtil de outras dimensões sensitivas do real através do recurso a materiais muito diversos. A artista articula nas suas obras características formais diversas – como a interação entre superfícies planas e curvas, o geometrismo cubista e as formas redondas polidas e orgânicas, na senda do surrealista Jean (Hans) Arp. Graças ao tratamento exterior com grafite, material indissociável do desenho, o frágil gesso adquire o aspeto compacto e pesado do metal, ludibriando a visão e até o tacto. Por outro lado, a combinação de materiais com caraterísticas opostas na mesma peça destaca correspondências entre formas de conjuntos e universos diferentes. Na peça “Obstado Adejo” (2012-13) a forma alada ou inflada pelo vento, no seu voo condicionado, tem por base uma superfície de pelo sintético que domina a vista principal da escultura, em gesso patinado a grafite.
Para além das esculturas, Cristina Vouga apresenta trabalhos bidimensionais de pequeno formato dominados pela preocupação com os volumes, apesar da relevância da cor e valores plásticos próprios do pastel seco.
Alexandre Magno (n. 1966) apresenta 30 trabalhos de pintura e desenho, com destaque para a pintura, que o artista destaca no seu projeto existencial como veículo de evasão, de libertação: “Com os meus quadros vou de viagem sempre que lhes pego” (1). Viagens que vai construindo a partir do nada, do espaço branco da tela, “para limpar a claridade a mais” (1) compondo laboriosa e progressivamente as formas que os fundos haverão de destacar ou absorver, uma construção intelectual e sensória que resulta na desconstrução da imagem, através de técnicas distintas interagindo no mesmo suporte, com destaque para o óleo e o acrílico. Viagens aventureiras, de reconhecimento e descoberta, emotivas e emocionantes, revelando as mil e uma facetas da forma, do modo de a percecionar e entender - tal como se perceciona e entende a própria vida, a individualidade, a relação com os outros e com o mundo. Nem por acaso, uma recente exposição do artista na Galeria Vieira Portuense intitulava-se “Percepcionista”.
A pintura de Alexandre Magno vibra de cor, energia e emoção. A composição cerrada, o espaço quase sempre fechado sobre as figuras, como se habitassem cavernas e túneis e tudo possa acontecer ao observador a partir do instante em que entra no mundo do quadro e se deixa passear por esse mundo de personagens enredadas em teias de cor, vibrante de emoção. Trata-se de uma linguagem plástica simultaneamente próxima dos “fauves” mas muito além do justificado pretensiosismo de juventude de Maurice de Vlaminck (1876-1958): “Transpus para uma orquestração de cor todos os sentimentos de que tinha consciência. Era um bárbaro, jovem e cheio de violência.” Na verdade, a sua obra enquadra-se na recuperação pós-moderna da pintura figurativa expressionista iniciada nos anos 1980, que ajudou ao renascimento da pintura alemã com os “novos selvagens” (Baselitz, Penck, Kiefer, etc.) e transformou as abordagens pictóricas neofigurativas no mundo artístico ocidental. A crise das bases ideológicas do Modernismo esteve na origem da rutura proposta pelos pós-modernistas, a convicção de que a arte já não consegue transformar a sociedade mas, ainda assim, consegue fazer-nos pensar, despertar consciências neste mundo cada vez mais dominado pela cultura de massas – essa sim, apontada para as audiências, para os lucros do consumo, e que vai mudando avidamente a sociedade e o mundo… para melhor?

(1)-“Alexandre Magno, pintor (pelo próprio)”, revista Anim’Arte, Viseu

Cristina Vouga, “Obstado Adejo”, 2012-13, gesso patinado a grafite, pelo sintético

Alexandre Magno, “Luta de Aves Raras”, 2008, óleo e acrílico s/tela

Vista parcial da exposição (galerias)