quinta-feira, 11 de julho de 2013

As praias portuguesas na Pintura

II Parte
(I Parte: Das paisagens marinhas aos retratos de praia)

José Malhoa, “Dois Artistas Pintando à Beira-mar”, 1918, óleo s/tela

Com 940 quilómetros de costa só no território continental, Portugal não poderia deixar de ter uma grande quantidade de pintores dedicados ao tema do mar e em particular das praias portuguesas, luminosas, de areia quente, água fria e bem iodada no norte, límpida e refrescante no sul.

As paisagens marinhas foram um género de eleição entre os artistas portugueses na viragem do século XIX para o XX, após a introdução do Naturalismo em Portugal por João Marques de Oliveira e Silva Porto na década de 1870 e da projeção que lhe deu o Grupo do Leão. Constituído por artistas que se reuniam na cervejaria Leão de Ouro, em Lisboa, o grupo realizou oito exposições, com muito sucesso.

Columbano Bordalo Pinheiro, “Grupo do Leão”, 1885, óleo s/tela, Museu do Chiado. 
Sentados, da esquerda para a direita: Henrique Pinto, José Malhoa, João Vaz, Silva Porto, António Ramalho, Moura Girão, Rafael Bordalo Pinheiro e Rodrigues Vieira. Em pé, da esquerda para a direita: Ribeiro Cristino, Alberto de Oliveira, o empregado de mesa Manuel Fidalgo, Columbano Bordalo Pinheiro (que se autorretratou de cartola), um desconhecido (o proprietário da cervejaria?) e Cipriano Martins.

Naturalismo surgiu em França como oposição aos ideais do Romantismo, defendendo a representação fiel da natureza, e adquiriu rapidamente uma vertente crítica denominada Realismo – que não teve grande expressão em Portugal. Os temas naturalistas (as paisagens de vários tipos, as cenas rústicas e burguesas, os costumes pitorescos, o retrato, …) eram consensuais: agradáveis e pacatos, mostravam a riqueza paisagística nacional, os monumentos, os grandes vultos e feitos da nossa história, os bons costumes e as tradições nacionais. Os clientes burgueses da pintura queriam que a realidade por eles experienciada perdurasse perante os seus olhos nas paredes das suas salas, permitindo-lhes recordar, com um simples olhar, situações, rostos, emoções, aprender o mundo pelas janelas das imagens. E por se ligar tão bem com a nostalgia nacional, foi apoiada pelo público, adquirida pelos clientes burgueses e pelas mais ilustres instituições do nosso país, instalou-se na academia e vingou pelo século XX dentro em concorrência com o Modernismo.

Os campos e praias nacionais foram assim pintados ao longo de décadas pelos mais merecedores artistas, a começar por Marques de Oliveira (Porto, 1853-1927) e Silva Porto (Porto, 1850-1893), depois João Rodrigues Vieira  (Lisboa, 1856-1898), Manuel Henrique Pinto  (Cacilhas, 1853-1912), José Moura Girão  (Lisboa, 1840-1916), António Carneiro  (Amarante, 1872-1930), António Ramalho Júnior (Barqueiros – Mesão Frio, 1859-1916), Henrique Pousão (Vila Viçosa, 1859-1884), José Malhoa (Caldas da Rainha, 1855-1933), Columbano Bordalo Pinheiro (Lisboa, 1857-1929), José Souza Pinto (Angra do Heroísmo, 1856-1939), Carlos Reis  (Torres Novas, 1863-1940), João Vaz  (Setúbal, 1859-1931), João Cristino da Silva, (1858 - 1948) Agostinho Salgado (Leça da Palmeira, 1905-1967), Mário Augusto (Alhadas - Figueira da Foz, 1895-1941), Luciano Freire  (Lisboa, 1864-1935), Artur Loureiro  (Lisboa, 1850-1907), Alfredo Keil  (Lisboa,  1850-1907), D. Carlos de Bragança (Lisboa, 1863-1908), Aurélia de Sousa (Valparaíso, 1866-1922), Carlos Reis (Torres Novas, 1863-1940), Veloso Salgado (Ourense, 1864-1945), Mily Possoz (Caldas da Rainha,  1888-1968), Falcão Trigoso (Lisboa, 1879-1956), Manuel Jardim (Coimbra, 1884-1923), Augusto Gomes (Matosinhos, 1910 - 1976), Lázaro Lozano (Nazaré, 1906-1999), entre outros. Quase todos pintaram praias e cenas de praia com pescadores, barcos de pesca, banhistas, turistas. Os pintores nascidos em localidades com atividade piscatória tradicional (Augusto Gomes, Agostinho Salgado, Lázaro Lozano, …) captaram com emoção os trabalhos e dramas das gentes do mar. 

A popularização da fotografia a cores retirou atualidade à pintura naturalista. A evolução tecnológica permitiu a comercialização de máquinas fotográficas manuais cada vez mais pequenas, mais baratas e fáceis de usar, assim como filmes mais rápidos e cores mais reais. No entanto, o desenvolvimento vertiginoso do litoral  alterou profundamente em poucas décadas o aspeto das praias´e essa pintura quase esquecida recuperou progressivamente o seu interesse iconográfico. A representação fiel da realidade conferiu-lhe estatuto documental. Os museus municipais e as galerias de arte não desperdiçaram a oportunidade de reanimar a memória dos artistas cujos nomes o público já não recordava, apoiando o regresso da pintura naturalista às montras da cultura e aos mercados da arte. 

Aqui ficam algumas imagens.

 Silva Porto, “Recanto de Praia” /"Portinho da Arrábida, Setúbal", óleo s/madeira

António Ramalho, “À espera dos retardatários – Passeio à Boa Nova”, óleo s/tela, 1887

João Marques de Oliveira, “Esperando os barcos”, 1892

João Vaz, “A Praia”, c. 1890, óleo s/tela, Casa Museu Anastácio Gonçalves

D. Carlos de Bragança, “Praia de Cascais”, 1906, Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

José Malhoa, “Praia das Maçãs”,1918, óleo s/madeira, Museu do Chiado

Mily Possoz, “Praia de pescadores - Cascais”, 1919, pintura a guache s/papel, Museu do Chiado

António Carneiro, “Praia da Figueira da Foz”, 1921

Falcão Trigoso, Marinha, 1924, óleo s/ madeira

Agostinho Salgado, "A Chegada dos Pescadores - Póvoa de Varzim", 1931, pintura a óleo

Aurélia de Souza, “Barcos de Pesca”, óleo s/tela

Alfredo Keil, “Fitando o Mar Largo”, óleo s/tela

Abel Manta, “Barcos na Nazaré”, 1935, óleo s/madeira

Mário Augusto, "Praia da Figueira da Foz", 1935, Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

Lázaro Lozano, “Viúvas na praia”, 1946, óleo s/platex, Museu Dr. Joaquim Manso

Augusto Gomes, Composição, óleo sobre tela, FBAUP

Manuel Jardim, “Crianças na praia”, óleo s/madeira, Museu Machado de Castro

Júlio Pomar, “Mulheres na Praia”, 1950, óleo s/ tela, CAM FCG

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Praias e Pintura: das paisagens marinhas aos retratos de praia

I Parte
(II Parte - As praias portuguesas na pintura)


Eugene Boudin, “Cena da Praia, Trouville”, 1869, óleo, Saint Louis Art Museum, St. Louis, EUA

Num conceito lato, o turismo pratica-se desde tempos imemoriais, através de viagens e estadias mais ou menos demoradas nos mais diversos destinos, por motivos de lazer, saúde, cultura, negócios ou por razões familiares e relações de amizade. No século XIX, a burguesia endinheirada descobre a praia como destino turístico e, no final desse século, eram já muito procuradas as praias do Canal da Mancha e da Côte d'Azur, também conhecida por Riviera Francesa. Nas primeiras décadas do séc. XX, as praias fizeram progressiva concorrência ao turismo termal, sobretudo a partir do momento em que se descobriram as delícias do banho de mar e se propagandearam as virtudes curativas do sol, da água iodada, das lamas regeneradoras. No verão, passou a ser moda a burguesia do interior deslocar-se para o litoral, hospedando-se em hotéis ou casas alugadas, dependendo do tamanho da família e das suas posses. Uma procura intensificada pela moda cada vez mais desinibida que encolhia de ano para ano o vestuário de praia, sobretudo o vestuário feminino.

Na década de 1950, acalmadas as hostilidades provocadas pelas duas tentativas alemãs de expandir o seu território e dominar a Europa, vivia-se um clima de grande otimismo económico, as viagens estavam mais facilitadas e as atividades de lazer e de ar livre adquiriram grande importância. Sendo um espaço ao alcance de todas as classes (e por isso mesmo começaram a despontar espaços de praia “privados” ou de acesso restrito) as praias encheram-se de gente de todas as idades, tornando-se um local de eleição para o lazer, convívio, exercício físico e prática desportiva de areia e mar, práticas relaxantes e curativas,… e até passerelle de moda e charme. Esta explosão do turismo de praia constituiu inicialmente uma fonte de riqueza económica para as comunidades piscatórias mas foi imediatamente reconhecida pelos agentes económicos, que apoiaram vigorosamente este gosto generalizado com grandes investimentos no litoral, quase sempre de modo precipitado e caótico. Ao seu serviço, através da publicidade, mas também procurando mais leitores e audiências (e não só no contexto da “silly season”), os media massificaram a procura das praias em todas os meses do ano, dividido em época alta e época baixa de acordo com a procura e, naturalmente, com preços diferentes – altos e baixos, de acordo com a época.

A cor e o movimento das praias atraiu pintores (e fotógrafos) de todas as tendências, até então levados ao litoral para captar emotivamente o gigantesco espaço marítimo, a força incomensurável do mar embatendo contra os rochedos e fustigando as dunas, ou a doçura do movimento ritmado das ondas em dias calmos. Agora, em vez da melancolia e tempestades interiores românticas, trata-se de captar a alegria esfusiante do veraneio de beira-mar, a frivolidade da época, o retrato de praia.

A marinha, subgénero da pintura de paisagem (paisagem marítima ou pintura de assuntos marinhos) surgiu no final do séc. XVI nos Países Baixos e desenvolveu-se nos séculos seguintes, em grande parte graças à especialização crescente dos artistas em pinturas com temas específicos. No século XIX, o espírito romântico dá uma grande projeção à pintura de paisagens marítimas, perdida com a chegada da fotografia. Os impressionistas foram particularmente exímios a explorar os efeitos luminosos na paisagem, de tal modo que a própria designação, impressionismo, deve-se ao título de um quadro de Monet, “Impressão: Sol Nascente" (1872). Os movimentos vanguardistas do século XX praticamente esqueceram a pintura de marinhas (e o género da paisagem, em geral) mas, na década de 1960, o hiperrealismo difundiu-se desde os EUA para todo o mundo, com o objetivo de competir com a fotografia na representação da realidade. O hiperrealismo ressuscitou os géneros tradicionais da pintura, sobretudo o retrato, a natureza-morta e a paisagem, mas filtrados por conceitos Pop. O retrato de praia, individual ou em grupo, tornou-se inevitável na fotografia mas, como novo tema da pintura, rebusca e descontextualiza antigos simbolismos, invade as galerias. Não se trata de mera concorrência de temas entre pintura e fotografia, é já a pintura a imitar a fotografia instantânea, a fotografia de férias. Artistas contemporâneos como os norte-americanos Alex Katz (n. 1927) e Eric Fischl (n. 1948) ou o alemão Oliver Kornblum (n. 1968, Hamburgo), pintam “marinhas” com gente, ou gente nas praias, uma pintura centrada no ser humano alegre e despreocupado, em espaços de lazer e diversão – ou o ser humano iludido por rotinas e modas frívolas, doces, inofensivas, inconsequentes?

Praia de Banhos na Póvoa de Varzim, 1884, óleo sobre tela, Museu do Chiado. João Marques de Oliveira  (1853-1927) introduziu em Portugal a pintura de ar livre – com Silva Porto.

 Eugene Boudin, "Trouville, na praia, abrigados por um guarda-sol”, 1895

 Paul Gauguin, “Mulheres do Taiti na praia”, 1891, óleo s/tela, Museu de Orsay, França. Em 1891, Gauguin refugiou-se na Polinésia Francesa para fugir da cultura europeia. A praia era então uma inevitabilidade na cultura taitiana. Hoje é um destino turístico paradisíaco, procurado por turistas de todo o mundo.

Joaquin Sorolla y Bastida, "Debaixo do Guarda-sol, Zarautz", 1910

 Pablo Picasso, “Mulheres correndo na praia (A Corrida)”, 1922, guache s/contraplacado, Museu Picasso, Espanha

 Alex Katz, “Porto #9”, 1999, oleo s/tela. © Alex Katz

Eric Fischl, “O Gangue”. © Eric Fischl

Oliver Kornblum, “Praias XV”. © Oliver Kornblum

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Michael Landy – Santos ao vivo em Londres



Entre os artistas contemporâneos que reutilizam materiais e partes de objectos usados nas suas criações, destaca-se o britânico Michael Landy (n. Londres, 1963). As suas obras combinam a performance com a instalação e privilegiam a recontextualização, transformando em obra de arte o que parece vulgar e mundano. As suas propostas artísticas complexas e de grande impacto visual ganharam visibilidade no grupo londrino YBA - Young British Artists (Jovens Artistas Britânicos) e colocaram-no rapidamente entre os melhores representantes da Arte Concetual e instalação europeias. Em Break Down (2001), a sua principal obra, Landy destruiu todos os seus bens e objetos pessoais, a maior parte deles insubstituíveis. Outra das suas obras de referência é Art Bin (2010).

Uma série de trabalhos recentes de Michael Landy encontra-se em exposição até 24 de novembro na National Gallery, Londres. Esta exposição, intitulada “Saints Alive” (Santos ao Vivo), é o resultado de uma residência artística do artista na National Gallery. Landy ficou fascinado com as representações sagradas de santos e suas histórias, realizando várias esculturas cinéticas com acumulação de formas diversas e peças de objetos e máquinas. A esculturas são interativas, bastando ao visitante carregar num pedal para lhes dar movimento.
Entre as esculturas expostas pode ser apreciado (e animado) um São Jerónimo ou um São Jorge.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cascatas de São João, tradição renovada


Joaquim Correia, autor da cascata da Fundação Escultor José Rodrigues (1º Prémio)

A cascata sanjoanina é uma tradição com largas e profundas raízes populares no norte de Portugal, onde o São João é particularmente venerado e inspira alguns feriados municipais. No patamar de uma porta ou no recanto de uma parede, sobrevive a cascata da garotada, mas, em espaços recolhidos ou dentro de portas, a cascata torna-se complexa e mesmo monumental, estática ou com figuras animadas e água a correr.

A Câmara Municipal do Porto organiza todos os anos o Concurso de Cascatas de São João. Em 2013, o concurso registou 26 concorrentes na categoria principal, mais 10 escolas e grupos de apoio a pessoas com necessidades especiais. Os prémios principais foram para a  Fábrica Social - Fundação Escultor José Rodrigues (cascata nº19) e para a Associação dos Moradores da Lomba (cascata nº 14). Foram atribuídas Menções Honrosas às cascatas do Colégio Nª Sª da Esperança (nº 12), de Orlando Sereno Moreira (nº 16) e do Sea Life Porto – Merlin Entertainments (nº 26).

Em Vila Nova de Gaia, uma das cascatas mais famosas é a do Sporting Clube do Candalense. Obra de diversos artesãos e sócios do clube, a cascata apresenta conhecidos monumentos de Gaia, como o mosteiro da Serra do Pilar e a ponte D. Luís, e cerca de 200 figuras em movimento.

Fernando Neto, autor da cascata da  Lomba, Bonfim (2º Prémio)

Cascata do Sporting Clube Candalense, com mais de 200 figuras animadas

Os monumentos à escala são uma característica da cascata do Candal

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A marca inconfundível de Yayoi Kusama



A artista japonesa Yayoi Kusama (草間 彌生 ou 草間 弥生) nasceu em 1929 em Matsumoto, Nagano. Conhecida pelas suas obras obsessivas com pontos de várias dimensões e cores e ambientes infinitos, é na realidade uma artista completa, que explorou uma grande variedade de técnicas artísticas ao longo da sua carreira: pintura, desenho, colagem, escultura, performance, instalação, design.

Após estudos artísticos convencionais no Japão, Kusama sentiu-se atraída pela arte ocidental e mudou-se para os EUA em 1958. Aí explorou as mais diversas técnicas artísticas oferecidas pelas vanguardas nova-iorquinas e desenvolveu a sua obra, balizada pela Pop Art, abstracionismo geométrico e Minimalismo. Nos anos 60, as suas ações artísticas radicais em favor da paz e contra a guerra do Vietname colocaram-na na ribalta das artes nos EUA. Começou a pintar grandes telas com padrões repetitivos, que prolongou depois pelas paredes, pelo chão e pelo teto, criando ambientes alucinantes. As suas instalações mais conhecidas caracterizam-se pela acumulação de formas e objetos iguais. Na performance, pintava os participantes com pontos coloridos ou vestia-os com as suas criações estilísticas, integrando-os em ambientes construídos com padrões óticos obsessivamente repetidos.

Regressou ao japão em 1973, dedicando-se também à escrita – contos, romance, poesia. O agravamento dos seus problemas obsessivos levam-na a entrar voluntariamente para uma instituição de tratamento de doenças mentais. Com o apoio de uma equipa de assistentes, dividiu os seus dias entre esse local e o seu atelier, nos arredores de Tóquio, continuando a trabalhar novas ideias e a produzir as obras de arte que lhe asseguram uma posição de destaque na arte japonesa contemporânea.

Em 1993, foi a figura central do pavilhão japonês na Bienal de Veneza, com o seu projeto “Quarto de Espelhos (Abóbora)”. Expôs nas principais galerias de arte internacionais e produziu obras de arte pública para instituições públicas e privadas no Japão (Fukuoka, Naoshima, Matsumoto), França (Lille) e EUA (Beverly Hills). A sua obra encontra-se representada nas coleções de importantes museus, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, Los Angeles County Museum of Art, o Stedelijk Museum de Amsterdão, o Centro Pompidou em Paris e o Museu Nacional de Arte Moderna de Tóquio.

Y. Kusama em video (2012)
Site oficial

domingo, 2 de junho de 2013

Num dia como este, nasceu o pintor e arquiteto florentino Niccola Nasoni

Pintura de Niccola Nasoni na Sé Catedral de Lamego

A comemoração dos 250 anos da construção da Torre dos Clérigos constitui uma boa oportunidade para evocar Nicolau Nasoni, a figura e a obra. Em agosto de 2013, passam exatamente 240 anos sobre a sua morte – curiosamente, o número de degraus que conduzem ao topo da Torre dos Clérigos.

Se a obra arquitetónica de Nasoni é numerosa e (re)conhecida (1), a vida do pintor e arquiteto florentino mostra bem a dimensão do artista, um génio da versatilidade, um “camaleão” (2), revelando grande capacidade de adaptação em novos contextos sociais e artísticos. Embora beneficiando de alguma “sorte”, certo é que soube aproveitar as oportunidades e relacionar-se com as pessoas certas, antes e depois de chegar ao Porto, para se tornar um dos mais importantes nomes do Barroco. Se tivesse ficado em Itália, provavelmente não seria hoje conhecido (2).

Os ensaios biográficos sobre Nasoni (3) são geralmente muito breves no que respeita ao pintor Niccolo Nasoni e quase omitem os acontecimentos em Malta, que o trouxeram ao Porto em 1725. Nasceu a 2 de junho, como eu (embora com 267 anos de diferença), a sua obra é admirável e por isso aqui fica, nesta data, este texto de homenagem.

Niccolo Nasoni (1691-1773) nasceu na pequena localidade de S. João de Valdano, então território florentino e atualmente uma localidade da região italiana da Toscânia. Aprendeu a pintar com um mestre local, Vicenzo Ferrati. Em 1709, Nasoni acompanhou Ferrati a Siena, para a realização de um fresco, aproveitando a influência do mestre para se insinuar no meio artístico local. Quando Ferrati morreu, em 1711, Nasoni tornou-se discípulo de um pintor importante, Giuseppe Nasini (1657-1736), com quem trabalhou cerca de uma década, participando na pintura de frescos em Sienna, Bolonha e Roma.

Ferrati e Nasini eram pintores de figura humana e os pintores trabalhavam geralmente em grupo, cada qual ocupando-se de áreas específicas da obra. Terá sido por esse motivo que Nasoni aprendeu a “quadrattura” em Bolonha, uma técnica de representação em perspetiva que intensificava a ilusão da profundidade, o “trompe l’oeil”. Mas por detrás do pintor, revelou-se muito cedo o arquiteto, o criador de composições volumétricas com efeito cenográfico, teatral, ricamente decoradas, embora com dimensões e durabilidade muito longe da monumentalidade secular das grandes obras escultóricas: os famosos aparatos de arquitetura efémera - cadafalsos funerários, arcos triunfais, carros alegóricos para as celebrações e procissões típicas do Barroco. Na Academia dei Rozzi, então uma associação de artesãos e atores de teatro, Nasoni angariou prestígio com essas obras, sendo frequentemente escolhido para orientar os trabalhos artísticos de cerimónias e cortejos.

Siena rivalizava então com Florença e Bolonha, mas havia pouco espaço para os pintores e Nasoni aceitou uma encomenda do grão-mestre da Ordem de Malta, o português D. António Manuel de Vilhena, que mandara procurar pintores para a Catedral de São João de La Valletta e para o seu palácio. Em 1724, Nasoni pintou e assinou um teto no palácio do grão-mestre, que apreciou o trabalho, e terá estabelecido boas relações com outro fidalgo ligado á Igreja Católica, o português D. Roque de Távora e Noronha. Talvez confiando excessivamente nesta proteção ou envolvido num qualquer jogo palaciano, Nasoni atreveu-se a reclamar virulentamente da Inquisição um pagamento em atraso. Acusado de blasfémia, foi encarcerado.

Certamente por influência dos portugueses, em particular D. Roque de Távora e Noronha – a quem o irmão, o deão da Sé do Porto, pedira que lhe mandasse um pintor de excelência – Niccolo Nasoni foi retirado da prisão e enviado para o Porto, após abdicar por escrito de tudo quanto lhe era devido pela Inquisição.

Assim aparece Nasoni no Porto, em 1725, ainda como pintor de frescos e ao serviço de D. Jerónimo de Távora e Noronha, deão da Sé Catedral do Porto. Em 1717, o bispo D. Tomás de Almeida fora nomeado Patriarca de Lisboa (um acontecimento que se repetiu a 18 de maio 2013, com a nomeação de D. Manuel Clemente) e o deão da Sé ficou a liderar a diocese do Porto.

As primeiras tarefas de Nasoni foram as pinturas da sacristia e do altar-mor da Sé do Porto – que dedica, reconhecido, ao seu protetor:

"NICCOLO NASONI FIORENTINO NATURALE DELLA TERRA DI S. GIOVANI VAL DARNO D. SOPRA DIE A DI PINGERE IN QUESTA SE IL 9RE DE 1725 E ORA 1731 E VENE PER MEZZO VENE DEL S.R. DECANO GIROLAMO TAVORA E NOROGNA"

Entretanto, casa em 1729 com Isabel Castriotto Riccardi, uma cantora italiana em trânsito pelo Porto, que faleceu no ano seguinte, ao dará à luz o primeiro filho de Nasoni.
Em Mafra, construía-se então a obra da época, o palácio e convento barroco projetado pelo arquiteto alemão de formação romana, João Frederico Ludovice, obra iniciada em 1717 no meio de grande entusiasmo popular. Portugal vivia um período de grande riqueza, graças ao ouro que chega do Brasil às toneladas, mas as grandes obras concentravam-se na capital e arredores. A cidade do Porto não pretendia ficar para trás e Nasoni vê aí uma oportunidade para aplicar os seus conhecimentos de arquitetura, primeiro em pequenos projetos e depois em obras de grande porte, das fontes e quintas de lazer aos palácios, das capelas às igrejas, beneficiando sempre do apoio do deão da Sé e da sua influência junto das maiores famílias do Porto – que se encontravam ligadas à Igreja através do clero e das Irmandades. A ligação de Nasoni a D. Jerónimo era tal que este foi testemunha do seu primeiro casamento (1729), padrinho do primeiro filho (1930) e padrinho do seu segundo casamento (1930), com a aia de sua mãe. No ano da consagração da Basílica de Mafra, 1730, Nasoni trabalha ainda nas pinturas da Sé, realiza também alguns pequenos trabalhos arquitetónicos na própria Sé e na Quinta dos Cónegos, a quinta de recreio dos bispos do Porto na Maia.

Embora a arquitetura portuguesa se confundisse então com a engenharia militar (os arquitetos que reconstruíram Lisboa após o terramoto de 1755 eram, na realidade, engenheiros militares) e os verdadeiros arquitetos fossem estrangeiros, a verdade é que Nasoni praticamente eclipsou a concorrência no Porto. Alguns arquitetos viram mesmo os seus projetos escrutinados e alterados por Nasoni  a pedido dos respetivos clientes, como aconteceu com a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, projetada por José Figueiredo Seixas, e cuja fachada intervencionada por Nasoni é uma das obras-primas da arquitetura Rococó portuguesa.

Mas Nasoni não teve apenas “sorte” com os mecenas, então fundamental para realizar obra de envergadura e garantir a persistência da obra e a memória do seu autor ao longo dos séculos. O norte era conhecido pelos seus canteiros, hábeis escultores do rude e duro granito, que não possuía a leveza nem as qualidades plásticas dos calcários, como a pedra de Ançã da Sé Velha de Coimbra ou o calcário fino dos Jerónimos, e por isso não era possível realizar no norte grandes construções em altura, com espaços mais abertos e, sobretudo, as decorações esculpidas características do Gótico e do Manuelino (4). Nasoni soube encontrar e escolher, entre os canteiros, os mestres dos mestres, que cortaram e trabalharam o granito com grande habilidade e sensibilidade. Sabe-se o nome de um desses mestres canteiros, António Pereira, que lavrava o granito com tanta habilidade que lhe extraía formas delicadas e precisas, autêntica filigrana (5). De resto, o arquiteto era extremamente exigente com a qualidade do trabalho dos canteiros, que o seu protetor explicava aos amigos deste modo:

De ordin.ro ouço queixar a este homem que os Mestres lhe faltão preceitos da obra (...) Os mestres he que fogem das suas plantas porque como os tira do sapateado, não querem coisas q lhe dem cuidado".

Seria natural que Nasoni tivesse descurado o exercício da pintura, embrenhado em tantos projetos e obras a acompanhar, mas isso não aconteceu. Em 1737 foi chamado a pintar os tetos da Sé de Lamego, obra reveladora de grande virtuosismo. As colunas salomónicas, balcões e abóbadas pintadas em perspetiva de acordo com a técnica da “quadrattura”, os anjos e a profusão de ornamentos ao gosto barroco, conjugam-se em quadros vibrantes de luz e cor. O observador é induzido a olhar para além do teto, descobrindo espaços dentro de espaços e janelas onde é suposto existir uma barreira física – inspirando experiências espirituais.

De seguida, realiza composições semelhantes nas pinturas murais da igreja de Santa Eulália da Cumieira (Santa Marta de Penaguião),  "multiplicando jarras, urnas, pedestais e volutas numa opulenta desordem que evoca grandeza" (6). Estas pinturas de Nasoni foram caiadas em 1951 durante as obras de reparação da igreja, tendo restado apenas a assinatura (7):

"NICOLAO NASONIO SENENSIS PINGEBAT ANNO 1739" (pintado por Nicolao Nasoni de Siena no ano de 1739). 


Em 1749 trabalhou nas pinturas da Igreja da Ordem Terceira, no Porto. Terá realizado mais pinturas noutras obras, muito provavelmente no Palácio do Freixo (1742-1754) por se tratar de uma encomenda muito especial do seu amigo e protetor D. Jerónimo de Távora e Noronha.

A finalizar, uma breve nota sobre o final da vida de Nicolau Nasoni, que aparece envolto em grande mistério. Após a morte do seu mecenas, que geria a sua fortuna, um dos filhos assumiu essa função e Nasoni perdeu somas consideráveis em péssimos negócios no Brasil, acabando os seus dias miseravelmente. Outra versão, conta que foi acolhido pelos Clérigos Pobres no seu hospital, como prémio por ter trabalhado graciosamente para a Irmandade, e aí terá falecido. Todas as versões garantem que Nasoni foi sepultado no interior da Igreja dos Clérigos, só não se sabe em que local. Fala-se na existência de retratos do pintor e arquiteto, que desapareceram, assim como não se conhece nenhuma planta original de Nasoni, apesar da quantidade de obras que lhe são atribuídas. O alegado retrato de Nicolau Nasoni existente na torre dos Clérigos será, na melhor das hipóteses, um “retrato” realizado muitos anos depois da sua morte e, portanto, um retrato imaginado (8).

Notas:

(1)-Talvez mesmo excessivamente reconhecida dada a quantidade de obras que lhe são incorretamente atribuídas. O seu sucesso como arquiteto terá criado um vasto grupo de seguidores que criaram as suas obras ao estilo de Nasoni e o misterioso desaparecimento das suas plantas alimentou a confusão.

(2)-Giovanni Tedesco (historiador italiano, especialista em Nasoni), no programa “Caminhos da História”. Giovanni Battista Tedesco é doutorado em Historia da Arte Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2012).

(3)-Cristina Vaz publica uma interessante biografia de Nasoni no site Vidas Lusófonas.

(4). A abóbada da Igreja dos Clérigos, inicialmente construída em granito, foi mesmo substituída por outra de mármore após a derrocada da primeira.

(5)-A filigrana já era utilizada na antiguidade clássica por gregos e romanos mas existe certamente uma relação entre a filigrana em ouro e prata, típica do norte de Portugal, o rendilhado das decorações arquitetónicas e as estruturas dos vitrais.

(6) "Nicolau Nasoni, arquitecto do Porto", SMITH, Robert C., 1966.

(7)-Fonte: IGESPAR. Esta história da caiadela intempestiva lembrou-me a tradicional morosidade do IGESPAR (ex-IPPAR) em alguns processos urgentes. O que pode ser mau pois ainda hoje há gente sempre disposta a uma boa caiadela.

(8)-Sobre o alegado retrato de Nicolau Nasoni nos Clérigos, ver mais AQUI.

sábado, 1 de junho de 2013

Joana Vasconcelos de cacilheiro em Veneza


Abre hoje, 01 de junho, a 55ª Bienal de Veneza, juntando 155 participantes de 38 países na mostra central, a Exposição Internacional de Arte, que decorre num espaço denominado Il Palazzo Enciclopedico (O Palácio Enciclopédico), que dá o título à Bienal. A exposição Internacional é comissariada por Massimiliano Gioni, o diretor artístico da Bienal presidida por Paolo Baratta.

Realizando-se desde 1895, este importante acontecimento artístico de projeção mundial conta este ano com a participação de 80 países de todo o mundo, muitos deles com pavilhões próprios. Sublinhando esta universalidade dialogante, a 55ª edição acolhe as participações especiais da IILA - Instituto Italo-Latino Americano (“El Atlas del Imperio”, reunindo sobretudo artistas sul-americanos), dos Emiratos Árabes Unidos (representados pelo artista concetual Mohammed Kazem) e de Taiwan, cujo museu de Belas Artes juntou artistas de diversos contextos culturais (Bernd Beher, Chia-Wei Hsu, Kateřina Šedá's + BATEŽO MIKILU) com o objetivo de promover a coexistência e a pluralidade cultural. 

A bienal regista igualmente uma forte participação de artistas chineses, desde o dissidente Ai Weiwei (com uma grandiosa instalação no pavilhão alemão) ao estreante Shu Yong , que apresenta um muro com 20 metros de comprimento construído com tijolos de resina. O pavilhão chinês tem por tema a “Transfiguração” e reúne obras de 7 artistas.

Joana Vasconcelos (n. Paris, 1971) representa Portugal com uma obra polémica, um cacilheiro cedido pela Transtejo que a artista transformou em obra de arte flutuante. No exterior, exibe a toda a volta um painel de azulejos portugueses reproduzindo uma vista atual de Lisboa, um desenho de Jorge Nesbitt  inspirado no Grande Panorama – painel de azulejos de Gabriel del Barco que representa Lisboa antes do terramoto de 1755. O painel foi colocado já em Veneza, onde a embarcação chegou a 21 de maio, após 16 dias de viagem por mar. O interior foi transformado num grande espaço visceral, recorrendo a formas orgânicas construídas com produtos têxteis industriais e artesanais e animadas com luz proveniente das lâmpadas LED incorporadas na obra.

O “Trafaria Praia” foi apresentado ontem em Veneza pela artista, com a presença de António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, e o Secretário de Estado da Cultura, Jorge Xavier Barreto, em representação do Governo Português, que organiza e apoia a participação portuguesa através da Direção-Geral das Artes, com curadoria de Miguel Amado.

O cacilheiro lisboeta ficará em Riva dei Partigiani, próximo do frequentado Giardini, inspirando comparações com o vaporetto veneziano e representando as relações marítimas entre Portugal e Veneza na Idade Media e no Renascimento. Apesar das críticas, que sempre existirão seja quem for escolhido, a ideia é original e o “Trafaria Praia” é o único pavilhão nacional a passear os visitantes pelas águas de Veneza, entre os Giardini e a Punta della Dogana. Depois de ter transportado 11 milhões de passageiros no rio Tejo durante 51 anos, o cacilheiro entrará novamente ao serviço até 24 de novembro, data de encerramento da Bienal, com duas viagens diárias rumo a um palmarés invejável.

A Bienal é ainda o pretexto para uma infinidade de inciativas paralelas, levando a festa das artes a todos os recantos de Veneza, Património da Humanidade e um dos mais procurados destinos turísticos do mundo.