Pintura de Niccola Nasoni na Sé Catedral de Lamego
A comemoração dos 250 anos da construção da Torre dos Clérigos constitui uma boa oportunidade para evocar Nicolau Nasoni, a figura e a obra. Em agosto de 2013, passam exatamente 240 anos sobre a sua morte – curiosamente, o número de degraus que conduzem ao topo da Torre dos Clérigos.
Se a obra arquitetónica de Nasoni é numerosa e
(re)conhecida (1), a vida do pintor e arquiteto florentino mostra bem a
dimensão do artista, um génio da versatilidade, um “camaleão” (2), revelando
grande capacidade de adaptação em novos contextos sociais e artísticos. Embora
beneficiando de alguma “sorte”, certo é que soube aproveitar as oportunidades e
relacionar-se com as pessoas certas, antes e depois de chegar ao Porto, para se
tornar um dos mais importantes nomes do Barroco. Se tivesse ficado em Itália,
provavelmente não seria hoje conhecido (2).
Os ensaios biográficos sobre
Nasoni (3) são geralmente muito breves no que respeita ao pintor Niccolo Nasoni e quase omitem os acontecimentos em Malta, que o trouxeram ao Porto em 1725. Nasceu
a 2 de junho, como eu (embora com 267 anos de diferença), a sua obra é admirável e
por isso aqui fica, nesta data, este texto de homenagem.
Niccolo Nasoni (1691-1773) nasceu na pequena localidade de
S. João de Valdano, então território florentino e atualmente uma localidade da
região italiana da Toscânia. Aprendeu a pintar com um mestre local, Vicenzo
Ferrati. Em 1709, Nasoni acompanhou Ferrati a Siena, para a realização de um
fresco, aproveitando a influência do mestre para se insinuar no meio artístico local. Quando Ferrati morreu, em 1711, Nasoni tornou-se
discípulo de um pintor importante, Giuseppe Nasini (1657-1736), com quem
trabalhou cerca de uma década, participando na pintura de frescos em Sienna,
Bolonha e Roma.
Ferrati e Nasini eram pintores de figura humana e os
pintores trabalhavam geralmente em grupo, cada qual ocupando-se de áreas específicas
da obra. Terá sido por esse motivo que Nasoni aprendeu a “quadrattura” em
Bolonha, uma técnica de representação em perspetiva que intensificava a ilusão
da profundidade, o “trompe l’oeil”. Mas por detrás do pintor, revelou-se muito
cedo o arquiteto, o criador de composições volumétricas com efeito cenográfico,
teatral, ricamente decoradas, embora com dimensões e durabilidade muito longe da
monumentalidade secular das grandes obras escultóricas: os famosos aparatos de
arquitetura efémera - cadafalsos funerários, arcos triunfais, carros alegóricos
para as celebrações e procissões típicas do Barroco. Na Academia dei Rozzi,
então uma associação de artesãos e atores de teatro, Nasoni angariou prestígio
com essas obras, sendo frequentemente escolhido para orientar os trabalhos
artísticos de cerimónias e cortejos.
Siena rivalizava então com Florença e Bolonha, mas havia
pouco espaço para os pintores e Nasoni aceitou uma encomenda do grão-mestre da
Ordem de Malta, o português D. António Manuel de Vilhena, que mandara procurar
pintores para a Catedral de São João de La Valletta e para o seu palácio. Em
1724, Nasoni pintou e assinou um teto no palácio do grão-mestre, que apreciou o
trabalho, e terá estabelecido boas relações com outro fidalgo ligado á Igreja
Católica, o português D. Roque de Távora e Noronha. Talvez confiando
excessivamente nesta proteção ou envolvido num qualquer jogo palaciano, Nasoni
atreveu-se a reclamar virulentamente da Inquisição um pagamento em atraso.
Acusado de blasfémia, foi encarcerado.
Certamente por influência dos portugueses, em particular
D. Roque de Távora e Noronha – a quem o irmão, o deão da Sé do Porto, pedira
que lhe mandasse um pintor de excelência – Niccolo Nasoni foi retirado da
prisão e enviado para o Porto, após abdicar por escrito de tudo quanto lhe era
devido pela Inquisição.
Assim aparece Nasoni no Porto, em 1725, ainda como pintor
de frescos e ao serviço de D. Jerónimo de Távora e Noronha, deão da Sé Catedral
do Porto. Em 1717, o bispo D. Tomás de Almeida fora nomeado Patriarca de Lisboa
(um acontecimento que se repetiu a 18 de maio 2013, com a nomeação de D. Manuel
Clemente) e o deão da Sé ficou a liderar a diocese do Porto.
As primeiras tarefas de Nasoni foram as pinturas da sacristia e do altar-mor da Sé do Porto – que dedica, reconhecido, ao seu
protetor:
"NICCOLO NASONI FIORENTINO NATURALE DELLA TERRA DI
S. GIOVANI VAL DARNO D. SOPRA DIE A DI PINGERE IN QUESTA SE IL 9RE DE 1725 E
ORA 1731 E VENE PER MEZZO VENE DEL S.R. DECANO GIROLAMO TAVORA E NOROGNA"
Entretanto, casa em 1729 com Isabel Castriotto Riccardi,
uma cantora italiana em trânsito pelo Porto, que faleceu no ano seguinte, ao dará
à luz o primeiro filho de Nasoni.
Em Mafra, construía-se então a obra da época, o palácio e
convento barroco projetado pelo arquiteto alemão de formação romana, João
Frederico Ludovice, obra iniciada em 1717 no meio de grande entusiasmo popular.
Portugal vivia um período de grande riqueza, graças ao ouro que chega do Brasil
às toneladas, mas as grandes obras concentravam-se na capital e arredores. A
cidade do Porto não pretendia ficar para trás e Nasoni vê aí uma oportunidade
para aplicar os seus conhecimentos de arquitetura, primeiro em pequenos
projetos e depois em obras de grande porte, das fontes e quintas de lazer aos
palácios, das capelas às igrejas, beneficiando sempre do apoio do deão da Sé e
da sua influência junto das maiores famílias do Porto – que se encontravam
ligadas à Igreja através do clero e das Irmandades. A ligação de Nasoni a D.
Jerónimo era tal que este foi testemunha do seu primeiro casamento (1729),
padrinho do primeiro filho (1930) e padrinho do seu segundo casamento (1930),
com a aia de sua mãe. No ano da consagração da Basílica de Mafra, 1730, Nasoni
trabalha ainda nas pinturas da Sé, realiza também alguns pequenos trabalhos
arquitetónicos na própria Sé e na Quinta dos Cónegos, a quinta de recreio dos
bispos do Porto na Maia.
Embora a arquitetura portuguesa se confundisse então com
a engenharia militar (os arquitetos que reconstruíram Lisboa após o terramoto
de 1755 eram, na realidade, engenheiros militares) e os verdadeiros arquitetos
fossem estrangeiros, a verdade é que Nasoni praticamente eclipsou a
concorrência no Porto. Alguns arquitetos viram mesmo os seus projetos escrutinados
e alterados por Nasoni a pedido dos respetivos
clientes, como aconteceu com a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, projetada por
José Figueiredo Seixas, e cuja fachada intervencionada por Nasoni é uma das
obras-primas da arquitetura Rococó portuguesa.
Mas Nasoni não teve apenas “sorte” com os mecenas, então
fundamental para realizar obra de envergadura e garantir a persistência da obra
e a memória do seu autor ao longo dos séculos. O norte era conhecido pelos seus
canteiros, hábeis escultores do rude e duro granito, que não possuía a leveza
nem as qualidades plásticas dos calcários, como a pedra de Ançã da Sé Velha de
Coimbra ou o calcário fino dos Jerónimos, e por isso não era possível realizar
no norte grandes construções em altura, com espaços mais abertos e, sobretudo,
as decorações esculpidas características do Gótico e do Manuelino (4). Nasoni
soube encontrar e escolher, entre os canteiros, os mestres dos mestres, que cortaram
e trabalharam o granito com grande habilidade e sensibilidade. Sabe-se o nome
de um desses mestres canteiros, António Pereira, que lavrava o granito com
tanta habilidade que lhe extraía formas delicadas e precisas, autêntica
filigrana (5). De resto, o arquiteto era extremamente exigente com a qualidade
do trabalho dos canteiros, que o seu protetor explicava aos amigos deste modo:
“De ordin.ro ouço queixar a este homem que os Mestres lhe
faltão preceitos da obra (...) Os mestres he que fogem das suas plantas porque
como os tira do sapateado, não querem coisas q lhe dem cuidado".
Seria natural que Nasoni tivesse descurado o exercício da
pintura, embrenhado em tantos projetos e obras a acompanhar, mas isso não
aconteceu. Em 1737 foi chamado a pintar os tetos da Sé de Lamego, obra reveladora de grande virtuosismo. As colunas salomónicas, balcões e abóbadas pintadas em
perspetiva de acordo com a técnica da “quadrattura”, os anjos e a profusão de ornamentos ao gosto barroco, conjugam-se em quadros vibrantes de luz e cor. O
observador é induzido a olhar para além do teto, descobrindo espaços dentro de
espaços e janelas onde é suposto existir uma barreira física – inspirando
experiências espirituais.
De seguida, realiza composições semelhantes nas pinturas
murais da igreja de Santa Eulália da Cumieira (Santa Marta de Penaguião), "multiplicando jarras, urnas, pedestais e
volutas numa opulenta desordem que evoca grandeza" (6). Estas pinturas de
Nasoni foram caiadas em 1951 durante as obras de reparação da igreja, tendo
restado apenas a assinatura (7):
"NICOLAO NASONIO SENENSIS PINGEBAT ANNO 1739" (pintado por
Nicolao Nasoni de Siena no ano de 1739).
Em 1749 trabalhou nas pinturas da Igreja da Ordem
Terceira, no Porto. Terá realizado mais pinturas noutras obras, muito provavelmente
no Palácio do Freixo (1742-1754) por se tratar de uma encomenda muito especial
do seu amigo e protetor D. Jerónimo de Távora e Noronha.
A finalizar, uma breve nota sobre o final da vida de Nicolau
Nasoni, que aparece envolto em grande mistério. Após a morte do seu mecenas,
que geria a sua fortuna, um dos filhos assumiu essa função e Nasoni perdeu somas
consideráveis em péssimos negócios no Brasil, acabando os seus dias miseravelmente.
Outra versão, conta que foi acolhido pelos Clérigos Pobres no seu hospital,
como prémio por ter trabalhado graciosamente para a Irmandade, e aí terá
falecido. Todas as versões garantem que Nasoni foi sepultado no interior da
Igreja dos Clérigos, só não se sabe em que local. Fala-se na existência de retratos
do pintor e arquiteto, que desapareceram, assim como não se conhece nenhuma
planta original de Nasoni, apesar da quantidade de obras que lhe são
atribuídas. O alegado retrato de Nicolau Nasoni existente na torre dos Clérigos
será, na melhor das hipóteses, um “retrato” realizado muitos anos depois da sua
morte e, portanto, um retrato imaginado (8).
Notas:
(1)-Talvez mesmo excessivamente reconhecida dada a
quantidade de obras que lhe são incorretamente atribuídas. O seu sucesso como
arquiteto terá criado um vasto grupo de seguidores que criaram as suas obras ao
estilo de Nasoni e o misterioso desaparecimento das suas plantas alimentou a
confusão.
(2)-Giovanni Tedesco (historiador italiano, especialista
em Nasoni), no programa “Caminhos da História”. Giovanni Battista Tedesco é
doutorado em Historia da Arte Portuguesa pela Faculdade de Letras da
Universidade do Porto (2012).
(3)-Cristina Vaz publica uma interessante biografia de Nasoni
no site Vidas Lusófonas.
(4). A abóbada da Igreja dos Clérigos, inicialmente
construída em granito, foi mesmo substituída por outra de mármore após a
derrocada da primeira.
(5)-A filigrana já era utilizada na antiguidade clássica
por gregos e romanos mas existe certamente uma relação entre a filigrana em
ouro e prata, típica do norte de Portugal, o rendilhado das decorações arquitetónicas
e as estruturas dos vitrais.
(6) "Nicolau Nasoni, arquitecto do Porto", SMITH,
Robert C., 1966.
(7)-Fonte: IGESPAR. Esta história da caiadela intempestiva
lembrou-me a tradicional morosidade do IGESPAR (ex-IPPAR) em alguns processos
urgentes. O que pode ser mau pois ainda hoje há gente sempre disposta a uma boa caiadela.
(8)-Sobre o alegado retrato de Nicolau Nasoni nos
Clérigos, ver mais AQUI.
Sem comentários:
Enviar um comentário