O cacau medicinal do senhor azedo*
O senhor de meia idade que atravessa a rua, indolente e cabisbaixo, a caminho do seu apartamento frio esquecido nas entranhas da cidade aborrecida, detesta doces, vocifera contra o mel, abomina açúcar, odeia chocolate. Todos os chocolates, sem excepção. O último amigo do senhor tristonho, preocupado com o seu bem-estar, pois nem todos os ódios descontrolados ferem apenas o bom humor, tentou inutilmente convencê-lo das virtudes e bondades do chocolate. Que até se atribui a um deus asteca o roubo das sementes do cacau do jardim do Éden, para benefício do homem, provando-se assim que certos crimes compensam pois o abuso do cacau transformava os rapazes em homens e os homens em deuses. O senhor de meia idade maneava teimosamente a cabeça, que não, que as virtudes e bondades do chocolate eram enganos pecaminosos, pode lá um homenzeco lambuzado comparar-se a um deus? Pecados enganados, corrigia pacientemente o último amigo do senhor amargo. Que antes de ser pecaminosa tentação, o cacau correu como vinho na boda de casamento de Luís XIII de França, trazido do Brasil por monges espanhóis. Pois foi, troçou o senhor azedo, e por isso o rei demorou quatro anos a deitar-se com a rainha e o reinado deu no que deu, no Richelieu, que também detestava guloseimas mas tinha grandes defeitos. Que nada, insistia delicadamente o amigo, mas acabava por desistir da questão aborrecido com a teimosia cega do senhor azedo. Seguiam depois cada qual para seu lado, o senhor de meia idade cada vez mais fortalecido de razões para continuar amargo e o último amigo cada vez menos amigo até se tornar apenas o último.
O senhor de meia idade que atravessa sozinho a rua, de queixo e ombros caídos, a caminho do seu apartamento gelado no coração obscuro da cidade embrutecida, detesta tudo o que seja doce ou lhe pareça adocicado, mesmo à distância de um breve olhar de repulsa. Já não tem amigos, que julga ter perdido por serem intolerantes e rancorosos, mas descobriu recentemente com incontido espanto que o cacau, antes de ser uma bebida doce, era mezinha tão amargosa e intragável que só os corajosos a tomavam sem ameaças e as crianças fugiam sequer de falar nela. Ao senhor azedo não apetecem os aromas e os sabores complexos do cacau, muito menos o soberbo toque aveludado e o aconchego voluptuoso do chocolate. A lembrança dos malefícios, desde as maleitas dentárias ao pesadelo da obesidade, acodem-lhe ao espírito como tsunamis. Tentando apaziguar os piores temores, afunda o corpo seco na sua poltrona nua, cruza as finas canelas diante da lareira apagada e imagina-se a mastigar estoicamente o cacau amargo medicinal. Coroou-se a si próprio com uma coroa de espinhos artificiais e conforta-se com o prazer enganado, amargo e gelado, de ter afinal muitos motivos para detestar chocolate. Todos os chocolates, sem excepção.
Sérgio Reis
*Texto publicado no jornal “Vivências”, do Agrupamento de Escolas de Seia, Nº1, Fevereiro de 2011, escrito por ocasião do encontro promovido pela Biblioteca Escolar da EB 2 3 de Tourais/Paranhos sob o lema “Cacau, Chocolate – Origens”.
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