segunda-feira, 22 de julho de 2013

Sobre a pintura de cenas marítimas, navios e batalhas navais

Nos 150 anos do Museu de Marinha (22 de julho 1863-2013)

Parte II - Veleiros e vapores

João Pedrozo, "Fragata, Barco do Tejo", 1868, gravura

As viagens e expedições científicas mas sobretudo a revolução industrial e os seus reflexos económicos e militares, impulsionaram até ao limite a construção naval e a navegação no século XIX. A concorrência do comboio reduziu drasticamente o tráfego fluvial mas o transporte internacional de matérias-primas e mercadorias continuou exclusivamente a fazer-se por mar, até se tornar confiável deslocar grandes cargas por meios aéreos, no início do século XX.

Graças às boas relações comerciais internacionais com diversos países e aos frequentes contactos por via marítima com as colónias ultramarinas, o litoral português de oitocentos viveu numa azáfama marítima constante. Na falta de portos, como hoje os entendemos, os grandes veleiros e os navios a vapor ancoravam ao largo ou em rios profundos, sendo grande a movimentação de barcos que asseguravam o transporte de passageiros e mercadorias, para além dos milhares de barcos de pesca que procuravam diariamente o mar, acolhidos em praias ou em pequenos portos naturais.

“Vista da Serra do Pillar e ponte pênsil sobre o rio Douro na Cidade do Porto”, por Joaquim Mestre das Neves, realizada entre 1842 e 1852. Os perigos que rodeavam a entrada dos grandes navios na barra do Douro exigiram a construção de um verdadeiro porto de mar, em Leixões. O naufrágio do vapor “Porto” (à direita, na imagem) em 1852, apressou a decisão. O problema não existia em Lisboa pois o estuário do Tejo é um imenso porto natural.

A pesca artesanal com artes tradicionais foi progressivamente abandonada na segunda metade do século XIX junto dos grandes centros urbanos, onde estavam concentradas as indústrias e vivia a população operária, devido à concorrência dos grandes armadores que forneciam a indústria conserveira entretanto instalada em Portugal (1) e à correspondente melhoria das condições de trabalho, que atraíram os jovens pescadores (2).

Tal como aconteceu noutros países europeus, os aspetos negativos da revolução industrial suscitou grandes divisões na burguesia – afinal a classe onde nasciam e labutavam os conservadores mais radicais e os revolucionários mais apaixonados. Para muitos, eram inegáveis as vantagens do progresso, que devia ser intensificado a todo o custo, enquanto outros condenavam a “desumanização” trazida pelo desenvolvimento industrial desenfreado e defendiam a reconciliação do homem com a natureza, o regresso aos valores do passado, a começar pela literatura, arte e arquitetura (3). Em 1846, Almeida Garrett apresentou a questão pela perspetiva liberal em “Viagens na Minha Terra”, obra muito divulgada à época,  mas, poucas décadas depois, Eça de Queirós mobiliza o melhor do seu realismo crítico em “A Cidade e as Serras”, para dar conta das perplexidades burguesas do final de século. As críticas à industrialização eram então mais consensuais (4) e os valores rústicos ancestrais começavam a parecer mais autênticos e encantadores – à distância, quase esquecidas as provações e privações que moldaram esses valores ao longo de um século marcado por invasões francesas, a fuga da família real para o Brasil, revoltas populares, traições inomináveis, lutas fratricidas… e finalmente o ultimato inglês, que colocou todo o país em pé de guerra e originou o hino nacional extremamente belicista que ainda hoje cantamos.

Em suma, o século XIX acaba por fundamentar as conquistas científicas e os avanços tecnológicos com o estudo apaixonado dos factos do passado, centrado nos grandes momentos históricos da nacionalidade, muito particularmente através de Alexandre Herculano e Pinho Leal. Acompanhando os tempos, as Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto foram criadas com um plano de estudos que incluía cadeiras de Desenho Histórico, Pintura Histórica, Gravura Histórica, Arquitetura Civil e Naval. Por outro lado, a crescente democratização da arte (em marcha desde o século XVIII, graças ao acesso mais alargado à obra artística, sobretudo através da gravura, e multiplicação de museus), promoveu o conhecimento artístico e vulgarizou a prática do desenho.

Ao longo de todo o século, os principais artistas portugueses abordam quase obrigatoriamente o tema da paisagem marinha, os pescadores e os seus barcos na praia, privilegiando a expressão sensível dos ambientes de mar e alegorias marítimas. No entanto, graças aos contactos privilegiados entre Portugal e Inglaterra, começou a ser conhecida em Portugal a obra de pintores de marinha ingleses, que não instigou imediatamente a representação pictórica dos grandes navios portugueses da época mas contribuiu para inspirar as gerações seguintes.

Na segunda metade do século XX, fruto do conhecimento científico e da valorização crescente dos factos históricos do passado, desenvolvem-se os estudos sobre os descobrimentos portugueses, ao nível da publicação de fontes e de algumas obras de referência, em parte justificadas com o 4º Centenário de Colombo (1492-1892) e com o forte envolvimento da Academia Real de Ciências de Lisboa: “Os Descobrimentos Portugueses e os de Colombo”, de Pinheiro Chagas, e “Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI”, do comandante Henrique Lopes de Mendonça – oficial da Marinha, historiador, arqueólogo naval e escritor, celebrado autor da letra do Hino Nacional, “A Portuguesa”.

Entre os diversos oficiais de Marinha que começaram então a debruçar-se sobre os navios dos Descobrimentos, avulta o Contra-almirante João Brás de Oliveira  (1851-1917), professor auxiliar de Desenho de Hidrografia e de Construção Naval. Interessado pela História e pela arqueologia naval, mobilizou as suas competências na área do desenho e da pintura para representar e dar a conhecer os navios dos séculos XV e XVI. Realizou conferências e publicou as suas teorias e desenhos, com destaque para “Os Navios das Descobertas”, com quinze ilustrações da sua autoria.

O Capitão de navio Luís Ascêncio Tomasini (1832-1902) foi igualmente um pintor reconhecido, embora tardio, dedicando-se por inteiro à pintura de marinhas e navios após se retirar da vida do mar, durante a qual foi realizando diversos apontamentos visuais e estudos. A obra de Tomasini encontra-se representada no Museu de Marinha através da pintura "Barcos no Tejo perto da Torre de São Julião da Barra", de 1885.

Na pintura portuguesa de então, destaca-se o pintor, gravador e desenhador João Pedrozo (Lisboa, 1825-1890), especializado na representação de navios, com obras expostas no Museu de Marinha.

Pintores como Silva Porto (Porto, 1850-1893), Alfredo Keil (Lisboa, 1850-1907) ou João Vaz  (Setúbal, 1859-1931) exploraram o tema dos barcos tradicionais do Tejo, de inegável beleza e complexidade náutica – como a Muleta, que envergava diversas velas na faina para melhor manobrar as redes de arrasto à deriva. A Muleta foi, aliás, um dos barcos do Tejo mais representados, em pintura, aguarela, desenho ou gravura.

Falando de pintura de navios e cenas de mar, não poderíamos esquecer o inegável mestre ibérico, Rafael Monleón y Torres (Valencia, 1843-1900), que foi piloto náutico antes de tornar pintor e conservador do Museu Naval de Madrid. A sua obra pode ser vista no Museu do Prado e influenciou a pintura ibérica do género, que se tornou mais exata e rigorosa, com interesse estético, plástico e documental. Todas as publicações espanholas sobre barcos e navegação reproduzem obras suas pois pintou exaustivamente a história da navegação e a história naval de Espanha para o Museu Naval de Madrid, que acolhe grande parte dos seus trabalhos.

Outro pintor famoso, com obras em museus navais um pouco por todo o mundo, inclusive no Museu da Marinha, em Lisboa, é Antonio Jacobsen  (1850-1921), um pintor dinamarquês naturalizado americano, especializado em embarcações a vapor – que deixaram má memória no Porto em 1852. Exatamente 43 anos depois do desastre da ponte das barcas (29 de março de 1809), o vapor “Porto” naufragou à entrada da Barra do Rio Douro, tirando a vida a 61 pessoas. O desastre chocou o país, lançando dúvidas sobre o rumo do progresso. A segurança dos novos transportes era então quase inquestionável mas os passageiros do vapor acabaram por perder a vida num acidente à vista de terra, aguardando pelo socorro que chegou demasiado tarde pois o salva-vidas da Foz tinha sido desativado.

O famigerado vapor “Porto” navegando no rio Douro (pormenor de uma gravura da época)

Apesar da atribulada história do século XIX português, os últimos monarcas de Portugal prestaram particular atenção aos assuntos do mar. Foi criado o primeiro Ministério da Marinha (5), realizou-se um importante inventário das pescas em Portugal (6) e o rei D. Carlos I impulsionou a oceanografia portuguesa. Os monarcas D. Fernando II, D. Luís I e D. Carlos I foram, aliás, grandes entusiastas das artes e apreciavam a pintura de temas ligados ao mar. D. Luís abriu a primeira galeria de arte em Portugal (7) e fundou o Museu de Marinha, que celebra 150 anos de existência em 2013 (22 de julho). D. Carlos revelou-se um notável pintor naturalista, sobretudo na aguarela. Aguardava-o, porém, um triste destino – assim como à família real.

Os últimos instantes de D. Manuel, D. Amélia e D. Maria Pia em solo pátrio, no areal da Ericeira, foram divulgados pelos republicanos através de fotografias e ilustrações publicadas na imprensa da época. Nessa tarde do dia 5 de outubro de 1910, a família real embarcou precipitadamente no Iate “Amélia” IV recorrendo a um simples barco de pesca para os conduzir ao navio.

(Parte I - Sobre a pintura de cenas marítimas, navios e batalhas navais"; Parte III - Saudades do Mar)

 Silva Porto, “Barcos Ancorados” (Varinos no Tejo)

Alfredo Keil, “Cacilhas”, óleo s/tela

 João Vaz, “Muleta do Barreiro”, óleo s/tela

 Braz de Oliveira, “Bergantim – 1510”, 1894, desenho à pena. Navio de vela e remos, com um ou dois mastros de galé, utilizado pelos portugueses no Oriente desde o século XVI.

 Luís Ascêncio Tomasini, "Barcos no Tejo perto da Torre de São Julião da Barra", 1885.

 Rafael Monleón yTorres, “A Fragata Numancia”, 1867, óleo s/tela. A fragata blindada Numancia devolveu aos espanhóis o orgulho naval perdido em Trafalgar. Foi o primeiro navio de guerra a circum-navegar o mundo, em 1867. Em 1916, encalhou junto a Sesimbra e foi desmantelada no local mas ainda se encontram restos do outrora imponente navio de guerra espanhol a 5/6 metros de profundidade.


João Hilário Pinto de Almeida, Muleta navegando a todo o pano, desenho. João Almeida ilustrou abundantemente o relatório do comandante Baldaque da Silva sobre o “Estado Actual das Pescas em Portugal, comprehendendo a pesca marítima, fluvial e lacustre em todo o continente do reino, referido ao anno de 1886”, Imprensa Nacional, 1892.


 Antonio Jacobsen , “Vapor Dona Maria”, 1897, óleo s/tela, Museu de Marinha, Lisboa

 D. Carlos de Bragança, “Iate D. Amélia”, Sesimbra, 1897. Comprado em segunda mão, o navio foi batizado com o nome da futura rainha de Portugal, D. Amélia, servindo de base móvel aos primeiros trabalhos oceanográficos de D. Carlos. Devido à pouca estabilidade da embarcação, o que comprometia algumas pesquisas científicas, D. Carlos trocou este Iate por outro, também batizado como “D. Amélia”.

Notas:

(1)-Devido à abundância e qualidade do pescado mas, sobretudo,  à escassez de sardinha na costa bretã, os franceses vieram instalar as primeiras fábricas de conservas em Portugal

(2)-Os armadores usavam o cerco americano, arte que usava enormes redes para cercar e capturar os cardumes. Cada armação envolvia vários barcos, cada qual com a sua função, e mobilizava dezenas de pescadores, com salário certo, e diversos auxiliares em terra. As grandes embarcações de pesca com cerco americano foram substituídas cerca de 1920 pelos Vapores do Cerco, grandes traineiras a vapor que empregavam uma companha de 40 a 50 homens cada, logo substituídos pelas traineiras a diesel. Devido à dificuldade em obter gasóleo durante a guerra, os vapores continuaram a carvão até finais da década de 1940.

(3)-Desde logo o romantismo, com os seus diversos desenvolvimentos geográficos. Em Inglaterra, as ideias de John Ruskin estão na base da ação dos pintores Pré-Rafaelitas, a primeira vanguarda artística a merecer essa designação. Ruskin desenvolve a sua teoria a partir da comparação de dois monumentos venezianos (“The Stones of Venice”, 1851-53), erguidos frente a frente e representando a melhor arquitetura de duas épocas bem distintas: a Idade Média e o Renascimento. Ruskin conclui preferir a primeira, apoiando movimentos revivalistas como o neogótico e o neorromânico. Em Portugal, os principais estilos revivalistas na arquitetura foram o neomanuelino e o neoárabe.

(4)- As cidades tornaram-se ruidosas e inseguras para o gosto burguês conservador, bonacheirão e pacto, incentivando quem pode a procurar refúgio fora delas, nas quintas dos arrabaldes. Os bairros operários tornaram-se em pouco tempo espaços sobrelotados, insalubres, focos de doenças e de indigência No final do século XIX, uma epidemia de peste bubónica alastra no Porto, com origem nas “ilhas” (bairros operários).

(5)- Em meados do séc. XIX, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha passou a Ministério em Portugal, com a designação de Ministério da Marinha e Ultramar. Mudou novamente de nome em 1910 mas, com a criação do Ministério das Colónias em 1911, passou a designar-se Ministério da Marinha. Pode conhecer os navios da Marinha portuguesa no séc. XIX aqui e aqui.

(6)-“Estado Actual das Pescas em Portugal”, A. A. Baldaque da Silva, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892. Exaustiva, a obra inclui um precioso vocabulário náutico (capítulo XIV).

(7)-Apaixonado pela pintura, D. Luís criou uma coleção de obras da artistas famosos, portugueses e estrangeiros, e abriu ao público a primeira galeria de arte, que funcionou durante cerca de seis anos, antes da existência de qualquer museu. Apesar de ter sido um rei constitucional, com poderes limitados, o reinado de D- Luís I teve um saldo  muito positivo. Basta lembrar a abolição da pena de morte para crimes civis (o código de justiça militar manteve-se em vigor) e a abolição da escravatura, que fizeram de Portugal um dos pioneiros dos direitos humanos. Mas também o início das obras dos portos de Lisboa e Leixões e a construção do Palácio de Cristal no Porto - que acolheria a Exposição Internacional do Porto em 1865.

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