quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sobre a pintura de cenas marítimas, navios e batalhas navais


Nos 150 anos do Museu de Marinha (22 de julho 1863-2013)

Armada que levou a Itália a Infanta D. Beatriz em 1521. Pintura atribuída a Gregório Lopes.

No século XV e XVI, Portugal foi uma das principais potências marítimas graças à sua construção naval, conhecimentos de navegação, espírito aventureiro, determinação expansionista. A relação com o mar moldou a nossa história e cultura, mantendo-se ao longo de séculos a influência portuguesa nos mais diversos cantos do mundo, visitados e ocupados pelos portugueses. No entanto, a construção naval portuguesa está hoje paralisada, dispomos de uma Marinha modesta (ver lista de navios), a frota pesqueira foi drasticamente reduzida por imposição comunitária e/ou interesses industriais e verificam-se elevados índices de desocupação dos pescadores, frequentemente impedidos de sair ao mar (1), assim como de subaproveitamento de técnicos e investigadores - apesar da enorme área marítima portuguesa e dos vastos recursos por explorar. Claro que vai longe o tempo em que Portugal e Espanha dividiram entre si o mundo descoberto e a descobrir (Tratado de Tordesilhas, 1494), razão pela qual ainda hoje o castelhano e o português se encontram entre as línguas mais faladas em todo o mundo (2), mas a atual área marítima portuguesa é 18,7 vezes a área terrestre nacional, o que coloca o mar português nas principais rotas marítimas atlânticas.

Ao contrário de antigas e modernas potências marítimas como a França, Inglaterra, Holanda ou EUA, Portugal não tem tradição de pintura de navios históricos, navegação e batalhas navais. Nesses países, o tema do mar e da navegação abrange a pintura do mais diverso material flutuante e a atividade de pintor de assuntos marinhos é prestigiada a ponto de existirem cargos especializados nos respetivos museus marítimos e associações nacionais que promovem especificamente o trabalho desses artistas. A título de exemplo, refira-se a  American Society of Marine Artists (EUA), Association des Peintres Officiels de la Marine (França); Australian Society of Marine Artists (Austrália); Dutch Society of Marine Artists (Holanda); Les Peintres de Marine Belges; Royal Society of Marine Art (Grã-Bretanha). Em Portugal e Espanha, os pintores que se dedicam a esta especialidade da pintura marinha encontram-se dispersos pelas associações genéricas.

A representação de embarcações através de desenhos, pintura e escultura (incluindo modelos em barro e madeira), remonta pelo menos a 12 000 a.C. (petróglifos em Gobustan, Azerbeijão) mas a pintura de cenas marítimas com navios e batalhas navais sistematizou-se nos séculos XV e XVI graças aos pintores flamengos, como Jan van Eyck (1380/90-1441) e Pieter Breughel / Breugel (1525-1569) antes do seu período dourado, entre os séculos XVII e XIX. Os pintores flamengos (atual Bélgica e Holanda) revolucionaram a pintura europeia com os seus jogos de luz, limpidez da imagem pintada, atenção ao pormenor.

Gaspard van Eyck (1613-1673), “Paisagem Marítima”, c.1650, oleo s/tela

Em Portugal, a epopeia dos descobrimentos inspirou e acompanhou grande parte da arte portuguesa desde a tomada de Ceuta (1415), descrita no final do séc. XV numa das célebres tapeçarias de Pastrana (3), realizadas nas oficinas flamengas de Tournai. Pelo menos duas obras do início do século XVI, atribuídas ao pintor régio Gregório Lopes (c. 1490-1550), atestam as capacidades representativas da pintura portuguesa de então. Uma delas, pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, mostra todo o pormenor de uma carraca (4) de três mastros, com destaque para o aparelho das velas. A outra pintura, que alguns estudiosos atribuem ao holandês Cornelis Anthonisz, representa a portentosa carraca Santa Catarina do Monte Sinai que, em 1521, levou a Itália a Infanta D. Beatriz (filha de D. Manuel I) para o seu casamento com Carlos III de Sabóia e conduziu Vasco da Gama à Índia, em 1524, para assumir o cargo de viso-rei.

No entanto, a mais impressionante obra de representação de navios produzida no século XVI e que chegou até aos dias de hoje, deve-se aos ilustradores anónimos que realizaram por encomenda o levantamento de todos os navios das armadas da carreira da Índia entre o ano da viagem de Vasco da Gama, 1497, e 1567: os códices “Livro de Lisuarte de Abreu” (1565) – que inclui desenhos de batalhas navais entre navios portugueses e galés turcas – e o imediatamente posterior “Livro das Armadas” (5). Os códices mostram desenhos esquemáticos a cores, de paleta muito reduzida, mas com algum pormenor, evidenciando semelhanças com as representações flamengas da época (por exemplo, Pieter Breughel). Embora as representações do livro de Lisuarte de Abreu (que encomendou a primeira parte da obra) tenham sido feitas no oriente, por terem resultado de uma encomenda do Governador da Índia, a linguagem gráfica é claramente ocidental. Apesar da influência europeia levada pelos portugueses, os artistas locais mantinham-se fiéis aos princípios da arte oriental – como acontecia no Japão com a Arte Namban, nesse mesmo século XVI.

Pieter Brueghel, “Batalha Naval no Golfo de Nápoles (O Porto de Nápoles)”, c.1558, óleo s/madeira

“Livro das Armadas”, ano de 506, página 10 do códice. “No ano de 506 – Partiram para a Índia a seis de março Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque, por capitães-mores de 16 velas (…)”

A pintura flamenga expandira-se pela Europa, influenciando a pintura praticada em diversos países, inclusive Portugal, e na Inglaterra, onde adquiriu particular expressão graças ao pintor holandês Willem van de Velde (c. 1611-1693). Chamado a Londres para pintar algumas obras para o rei Carlos II, van de Velde acabou por fixar os parâmetros da pintura de marinha britânica, com as paisagens de mar e os navios da época. A novidade foi bem acolhida por comerciantes e capitães, que contratavam pintores para pintar os seus navios e acompanhá-los nas suas viagens, sobretudo no século XVIII. O prestígio e os lucros do ofício somados à oportunidade de viajar e conhecer o mundo, tornaram o cargo apetecível entre os artistas, aumentando a concorrência e a especialização dos pintores – e desenhadores. Um dos mais conhecidos foi William Hodges (1744-1797), que acompanhou o Capitão James Cook, e os mais representativos pintores do século XVIII britânico pintaram a bordo de navios:  Robert Cleveley (1747-1809), George Chambers (1803-1840), Nicholas Pocock (1740-1821) e Thomas Luny (1759 – 1837). Outro importante cliente – antes dos museus navais que começavam então a surgir um pouco por toda a Europa – era o Almirantado. 

Em França, Luís XV encarregou Claude-Joseph Vernet  (1714-1789) de pintar os portos do reino em 1753, incumbência que despertou a atenção dos franceses para esse género de pintura. Os quadros de Vernet constituem importantes documentos visuais sobre as cidades portuárias dessa época e o seu sucesso originou a criação do cargo de pintor da Marinha. Em 1830, seriam nomeados dois, número que sobiu para quatro em 1860 – sendo um deles Morel-Fatio, autor de um quadro existente no Museu de Marinha sobre “A Batalha Naval do Cabo de São Vicente”, travada a 5 de julho de 1833 entre a esquadra de D. Miguel e a de D. Maria II. Tal como acontecera na Inglaterra, muitos pintores franceses do século XIX procuraram especializar-se nesse género de pintura e disputaram entre si os títulos de pintor oficial da Marinha. A confusão era tal que o governo se viu obrigado a decretar, em 1901, o número máximo de 20 pintores e, em 1920, a legislar sobre o estatuto do pintor de marinha.

Em Portugal, os artistas que armavam os cavaletes nas praias e portos nacionais para pintar paisagens marinhas e barcos de pesca varados na praia, ficaram – é adequado dizê-lo – a “ver navios”. 

(Parte II: “Veleiros e vapores”; Parte III: Saudades do Mar)

Notas:

(1)- “Entre 2001 e 2011, a população empregada na pesca diminuiu 18,0%” (menos 2 892 empregos). No que respeita a embarcações, 4 653 embarcações tiveram autorização para operar em 2012. Em 2011, foram abatidas 68 embarcações em 2011 e 123 em 2012, sobretudo de grande porte, o que representa um aumento de 140% em relação a 2011. Fonte: INE e DGRN, “Estatísticas da Pesca – 2012”.

(2)-2º e 4º, respetivamente, em número total de falantes, segundo o Observatório da Língua Portuguesa.

(3)-A exposição “A invenção da glória - D. Afonso V e as tapeçarias de Pastrana” esteve patente em 2010 no Museu Nacional de Arte Antiga. Uma das tapeçarias descreve a entrada dos portugueses em Ceuta e outras três narram a conquista de Arzila e Tânger (1471) com uma linguagem próxima da banda desenhada. As tapeçarias foram encomendadas para glorificar o reinado de D. Afonso V mas não chegaram a Portugal, ficando à guarda da Colegiada de Pastrana.

(4)-A carraca era uma nau de grande porte, o maior navio do seu tempo. Era utilizada para transporte de mercadorias, armada com peças de artilharia de vários calibres.

(5)-Pertence à The Pierpont Morgan Library, Nova Iorque, o “Livro de Lisuarte de Abreu” regista o nome de quem encomendou a primeira parte da obra. A terceira parte, a representação das armadas, foi realizada por ordem do Governador da Índia e abrange as Armadas desde 1497 e 1563. O “Livro das Armadas” ("Memória das Armadas que de Portugal passaram à Índia") existente na Academia das Ciências de Lisboa é uma representação exaustiva das naus das Armadas da Índia (e do que lhes sucedeu na viagem) entre 1497 e 1567.

(6)- Em meados do séc. XIX, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha passou a Ministério em Portugal, com a designação de Ministério da Marinha e Ultramar. Mudou novamente de nome em 1910 mas, com a criação do Ministério das Colónias em 1911, passou a designar-se Ministério da Marinha.

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