quinta-feira, 29 de julho de 2010

A ÚLTIMA CEIA NO MUSEU DE ÉVORA

ÚLTIMA CEIA – Instalação com fotografias de Jorge de Sousa, Marcos López e escultura de Noémia Cruz, Museu de Évora, 01 de Julho a 30 de Setembro.
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Jorge de Sousa, "A Última Ceia" (1)

Integrado no programa do Festival de Performance e Artes da Terra “Escrita na Paisagem” 2010, encontra-se patente no Museu de Évora, até 30 de Setembro, uma Instalação intitulada “Última Ceia”. A mostra junta duas fotografias de Jorge de Sousa (n. Moçambique, 1962) e do argentino Marcos López (n. Santa Fé, Argentina, 1958) com a escultura de Noémia Cruz (n. Ourique, 1948), “Isto é o meu corpo”. A escultura subverte o sentido da última ceia ao jogar com o conceito de corpo, oferecido, partido, partilhado, anexando a esse sentido o seu próprio historial acidentado: exposta pela primeira vez em 1979, a obra foi vandalizada; no ano seguinte, ficou parcialmente destruída num incêndio no atelier da artista; finalmente, foi recuperada e exposta três décadas depois.
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Leonardo da Vinci, “L’Ultima Cena”, 1495-1498
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O tema da última ceia de Cristo com os apóstolos tem sido muito tratado na arte ocidental, sobretudo através da pintura, nas mais diversas épocas e contextos artísticos. A obra mais conhecida é a pintura mural realizada por Leonardo da Vinci no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, mas essa obra teve precursores como Andrea de Castagno (Castagno, 1423-Firenze, 1457).

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Andrea de Castagno, “L’Ultima Cena”, 1447, Sant’Apollonia, Florença

Ao longo dos séculos seguintes, inúmeros pintores foram sensíveis ao tema, também abordado no século XX por artistas como Salvador Dali (“O Sacramento da Última Ceia”, 1955), Andy Warhol (série “The Last Supper”, 1986), Francine LeClercq ("Mise en S(cène)", Instalação, 2007) ou Devorah Sperber (Instalação, 2007). O próprio Museu de Évora, que alberga a instalação, inclui no seu acervo duas pinturas da última ceia, uma da autoria do Mestre do Retábulo da Sé e outra do pintor flamengo Martin de Vos (Antuérpia, 1532-1603).

Há últimas ceias desenhadas, gravadas, impressas, esculpidas, modeladas, colagens, assemblagem de objectos inusitados, e até construídas em Lego, sendo igualmente um tema recorrente da arte popular dos mais diversos países e culturas tocadas pelo cristianismo. Finalmente, a fotografia agarrou o tema e recriou-o com a liberdade possível em contextos modernos, impulsionada pela publicidade e abençoada pelos media. Não é por acaso que imagens relacionáveis com este tema serviram para promover filmes e séries televisivas como "M.A.S.H." (Robert Altman, 1970), “Battlestar Galactica” (2003), “Star Wars”, “House” (2004), “Shameless” (2004), “Asao” (Hong Kong, 2005), “The Sopranos” (uma belíssima foto de Annie Liebovitz), “The Simpsons”, “Lost” (última temporada, 2010).


Doménikos Theotokópoulos, El Greco, “A Última Ceia”, 1567-1570

Na pintura, a minha última ceia preferida é a de El Greco (1541–1614), obra pintada entre 1567 e 1570. No quadro, tudo parece pairar, com uma estranha leveza e dinâmica, desde a mesa da ceia às figuras esvoaçantes. A lembrar que a pintura de El Grego não se enquadra em qualquer estilo artístico do seu tempo.

Para além da unidade e equilíbrio da composição e encenação bem sugestiva, as fotografias de Jorge de Sousa e de Marco López estão recheadas de pormenores bem contextualizados: o estilo “urbano” de Jorge de Sousa em contraste com uma ceia tipicamente argentina.

O fotógrafo português procura fixar, sem qualquer fotomontagem, “imagens que se comportam como máquinas do tempo, construídas a partir de elementos contemporâneos, para viagens a um passado por vezes muito mais distante do que a minha própria existência”. O argentino, pelo seu lado, não quis fotografar a “refeição da tristeza, suspeição e ira que caracteriza a obra-prima italiana, mas sim a refeição do encontro da comunidade, da hospitalidade e da amizade”. “Tento que o meu trabalho tenha a dor e o despojamento da América mestiça" (2).
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A exploração de temas religiosos na arte – e na literatura, como sucedeu, por exemplo, com Salman Rushdie ou José Saramago - pode ser um assunto delicado e gerar polémicas. A Última Ceia, padronizada pela obra paradigmática de Leonardo da Vinci, é um dos temas mais abordados, glosados e abusados, especialmente por não encerrar um conceito fundamental e por isso intocável, como acontece com a Divina Trindade ou a Sagrada Família, mas sim pela efervescência dramática da cena, que pode ser decalcada noutros contextos, o caldeirão de emoções que anuncia a Paixão de Cristo. A competição de imagens na publicidade e a democratização da imagem graças às novas tecnologias da informação e comunicação intensificou a manipulação da obra-prima de Leonardo, com reacções pontualmente intransigentes. Em 2005, por exemplo, um anúncio encomendado pelos estilistas franceses Marithé e François Girbaud com uma foto inspirada na última ceia foi proibida em França e em Milão. Já nos EUA, a utilização da última ceia serve inclusive para anunciar feiras de rua e pizzarias. Por cá, nem estaremos muito mal se nos lembrarmos da reacção do mundo islâmico à publicação das célebres caricaturas de Maomé no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, nesse mesmo ano (2005). Em Portugal, o desacato ficou-se pela controversa caricatura do papa João Paulo II, de António Antunes (“Preservativo Papal”, 1992), engrossando as ondas de choque produzidas pela publicação de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), de José Saramago, mas ainda hoje existem críticas e pressões. Em entrevista ao site frrrkguys.com , Jorge de Sousa reconhece ter “recebido algumas críticas oriundas dos sectores mais conservadores e fundamentalistas do Cristianismo, mas talvez, pelo carácter sério com que abordo este tema, acaba por não sobrar muito espaço para os argumentos dessas pessoas ofendidas pelo meu trabalho” (3). Já Marcos López parece mais ambientado aos meandros e contingências da publicidade na Argentina. Vive em Buenos Aires, onde trabalha como fotógrafo e realizador de filmes independente, encontrando-se actualmente envolvido em projectos de arte e direcção fotográfica para anúncios de televisão.


De entre os diversos fotógrafos que trataram este tema, gosto particularmente das últimas ceias do israelita Adi Nes (n. 1966), do americano David La Chapelle (o “Fellini da fotografia”, segundo o New York Times, n. 1963), da sueca Elisabeth Ohlson Wallin (n. 1961), e do americano Howard Schatz (n. 1940).
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(1) - frrrkguys.com
(2) – Texto da instalação – Évora, 2010.
(3) – “
O Corpo como Templo da Alma” – T. Angel entrevista Jorge De Sousa, 2009.

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