O estereograma esconde uma imagem tridimensional dentro de uma imagem bidimensional
No mundo dito desenvolvido, o culto da imagem é uma
característica das sociedades individualistas e voyeristas, notavelmente
servido pela fotografia - hoje merecedora de uma enorme difusão através das
redes sociais e cuja função principal é fixar para a posteridade o momento mais
fugaz, a reação espontânea, a pose distraída – ou, pelo contrário, o momento
mais longamente congeminado. Nessas sociedades, tornaram-se cada vez mais
difusas as fronteiras entre as aparências, e já não apenas entre o que é e o que
parece ser. A representação da realidade idealizada torna-se multidisciplinar,
mobiliza diversas linguagens e saberes para construir sonhos tridimensionais,
muito para além das habilidades bidimensionais “trompe l’oeil” e outras ilusões
visuais. A novela satírica de Edwin Abbott Abbott, “Flatland: A Romance of Many
Dimensions” (1), revela desde 1884 que temos um entendimento muito limitado
da realidade. Teorias posteriores, com destaque para a curvatura do
espaço-tempo (Einstein) ou a teoria do caos, aumentaram a consciência dessas
limitações. Ao contrário de ainda ontem, as verdades de hoje estão longe de
serem únicas e imutáveis, havendo verdades mais verdadeiras que outras, em
escalas que variam de acordo com a geografia humana, e os valores de referência
individualizaram-se, a imagem que as pessoas têm de si próprias serve de medida
padrão para o seu exclusivo conhecimento e entendimento do mundo.
Em matéria de imagens, há dois princípios que nunca
devemos esquecer: as imagens são sempre complexas e olhar é
muito diferente de ver. Como ensina o provérbio chinês, “Uma imagem vale por
mil palavras” e só nos parece simples quando a olhamos de relance ou
distraidamente. Refiro-me a imagens comuns, dos jornais e revistas, muitas
vezes incómodas e até repugnantes, mas também às imagens “construídas”, imagens
dentro de imagens, sentidos dentro de sentidos, mensagens dentro de mensagens.
Como acontece nos estereogramas,
que nos apresentam uma imagem bidimensional construída de modo a que,
desfocando os olhos (ou focando-os para além do suporte da imagem), conseguimos
ver uma imagem totalmente diferente da primeira e a três dimensões, flutuando
no espaço.
Tal como as pessoas, as imagens (no sentido atual do
termo) nunca são o que parecem. Têm sempre sentidos e intenções mais ou menos
ocultas, subliminares, uma característica muito explorada pela publicidade,
televisão, cinema e videojogos. As nossas sensações e emoções estão a ser
continuamente manipuladas, provocando reflexos condicionados e respostas
aparentemente conscientes que acabamos muitas vezes por aceitar e integrar nas
rotinas diárias. Mas enquanto a imagem publicitária necessita seguir os padrões
sociais, outras imagens ganham ainda mais sentido confundindo-os, e só se
tornam perversas quando baralham as ditas prioridades sociais e desmagnetizam a
bússola da moral.
No caso do estereograma, não é fácil desfocar a visão
pois os nossos olhos foram treinados para fazer precisamente o contrário:
convergir no plano da imagem. Mas o que acontece se desfocarmos os preconceitos
adquiridos ao longo dos anos da nossa vida e olharmos com olhos de ver as duas
imagens seguintes? O que é que podemos ver, afinal, em cada uma delas? O que é
que cada uma delas realmente diz?
(1) - Ler o livro online. Ver trailer do filme.
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