Há
precisamente um ano, a obra “Garrafa das Caldas”, da ceramista caldense
Umbelina Barros, foi retirada da 10ª Bienal Internacional de Cerâmica Artística
de Aveiro após veementes protestos dos trabalhadores e clientes do Mercado do
Peixe José Estêvão, à entrada do qual havia sido colocada. A direção da Bienal
ainda procurou um local alternativo para a polémica obra, um falo gigantesco
(2,47 metros) de grés vidrado, mas previu igual ou maior contestação e a peça
foi desmontada. Na altura, registei e comentei o caso neste blogue, no
seguimento de alguns episódios censórios que coligi anteriormente.
No
passado dia 3 de outubro, a “Garrafa das Caldas” foi instalada na Casa da Guia,
em Cascais, antecedendo uma importante exposição individual da artista, com
inauguração marcada para 20 de outubro, e tem sido, ao que me dizem, alvo de
críticas e protestos.
Gostar ou não gostar, depende naturalmente do gosto de
cada um, que pode ser educado de muitas maneiras, ou simplesmente não ser
educado, mas que evolui com desafios deste tipo, confrontação de
sensibilidades, obras de arte que devem ser apreciadas com espírito aberto,
afastando preconceitos (pré-conceitos) que possam toldar ou condicionar essa apreciação.
Ocorre-me, a propósito, uma frase de João Lobo Antunes: “Embora a definição (de belo) continue a iludir-nos, o conceito de
beleza é ainda o valor estético mais seguro” (1). No
entanto, convirá não esquecer que as obras polémicas têm motivações e intuitos
diversos, que devem ser sempre esclarecidos. Em Portugal, causou alguma
polémica a estátua a Alves Redol em Vila Franca de Xira, da autoria de Lagoa
Henriques, mas obras polémicas como o
monumento ao assassino Fritz Haarmann em Hanover (2) ou o projeto de Gregor
Schneider sobre a morte pública de um doente terminal (3) necessitam de ser bem
explicadas e desdramatizadas, embora o seu objetivo principal seja esse: provocar
reações visando a discussão de ideias e de costumes, a compreensão e
consequente destruição de mitos e fantasmas indesejáveis em sociedades
evoluídas. Claro que o artista possui atualmente meios muito diversos para se explicar
e promover a sua obra, tal como o público possui novos e práticos meios para o
questionar, procurar mais informação, mostrar responsavelmente o seu agrado ou
desagrado. Porém, o diálogo construtivo é fundamental para o entendimento da
obra de arte - e afinal do nosso mundo, repleto de obras e realizações humanas
cujo conhecimento e entendimento fariam, de todos nós, melhores seres humanos.
"A Garrafa, os Percebes e a Imagem", instalação de Umbelina Barros, grés vidrado. Foto: Eurostand
A
propósito das críticas e até pressões para que seja retirada a instalação de
Umbelina Barros da Casa da Guia, em Cascais, a organização da mostra (Eurostand)
solicitou-me um comentário sobre o assunto e enviei o seguinte:
Considero
fundamental que a instalação “A Garrafa, os Percebes e a Imagem” continue em
exposição, desde logo por defender a liberdade de criação e expressão, mas
sobretudo para agitar as mentalidades conformadas e apáticas despertando a
discussão sobre o sentido do Belo e a função da Arte na sociedade
contemporânea.
Parece-me também
importante destacar alguns aspetos que distinguem a apresentação na Casa da
Guia desta instalação artística, do que aconteceu na bienal de cerâmica de
Aveiro: a precipitada e agressiva intrusão de um elemento fálico no espaço
quotidiano de pessoas que o entenderam como ordinário e ultrajante. Em Aveiro,
a instalação foi desmembrada, certamente com a aprovação da artista: a
“garrafa” foi montada na entrada do Mercado do Peixe, os “Percebes” ficaram no
Museu de Aveiro e a “Imagem”, então uma só foto, nem se viu.
O
que se mostra na Casa da Guia não é uma obscenidade, um insulto popular, um
desrespeito pela instituição e pelos seus visitantes. É um exercício de
liberdade de criação, expressão e exposição, uma séria provocação intelectual
apresentada num meio cultural que reconhece e valoriza o Nu como Arte, seja na
pintura, na escultura ou na fotografia, um meio evoluído incapaz de confundir o
célebre (polémico e também frequentemente censurado) quadro de Gustave Courbet,
“A Origem do Mundo”, com mera pornografia. E o mesmo se pode dizer de obras de artistas contemporâneos
como Lucian Freud, que trabalhou intensamente o nu na pintura, Helmut Newton na
fotografia, Ron Mueck na escultura ou Milo Manara na BD (4). O tema do Nu
atravessa toda a história da Arte, desde a pré-história à atualidade,
constituindo mesmo um género artístico académico. O problema surge quando os
dirigentes (políticos, religiosos,...) ou grupos sociais representativos, se
acham no direito de limitar ou oprimir os direitos dos restantes, que raramente
são a minoria, especialmente numa matéria tão sensível como é a sexualidade, e
muito mais quando esta se exprime através da sensualidade e do erotismo.
É possível
identificar diversos momentos em que a censura limitou de modo organizado a
expressão artística ou mutilou obras de arte (como aconteceu no séc. XVIII, com
as célebres parras acrescentadas a pinturas e esculturas), mas já foi pior e em
países ocidentais agora conhecidos pelas suas leis e costumes liberais. Em
Portugal, têm ressurgido algumas censurazitas moralistas, de sentido difuso,
compreensíveis em contexto democrático, uma espécie de jogo de forças de prós e
contras. A expressão da nudez e da sexualidade continua no entanto a ser uma
questão sensível, a merecer reflexão e os mais diversos estudos especializados.
Certo é que a tolerância não deve ser imposta nem a liberdade castigada.
Notas:
(1) - “As Faces de Arcimboldo”, in “Memória de
Nova Iorque e Outros Ensaios”, Gradiva, 2002).
(2) - Fritz Haarmann, um dos piores assassinos da história criminal da Alemanha, foi
condenado à morte e executado em 1925. No final dos anos 80, o município de Hanover
encomendou ao escultor e artista gráfico austríaco Alfred Hrdlicka
(1928-2009), um monumento (ver imagem ao fundo) para evocar o seu mau exemplo e lembrar que a maldade
e a desumanidade surgem onde menos se espera, no caso a cidade onde o assassino
residiu. Nada de mais, se nos recordarmos das razões apontadas para a exposição
pública em Paris da escultura de 5 metros “Coup de Tête” (“A Cabeçada”) da
autoria do escultor argelino Adel Abdessemed, que representa o fim da carreira
futebolística de Zidane (França-Itália, final do Mundial de 2006). O autor da estátua
de Hanover também era conhecido pelas suas obras polémicas, algumas das quais
foram censuradas, mas após um esclarecimento da então ministra da Cultura da
Alemanha os cidadãos reconheceram que a obra de Hrdlicka poderia ser uma mais-valia para a cidade, que não deveria negar
o seu passado histórico.
(3) - O alemão Gregor Schneider (n. 1969), que já
expôs em Serralves em 2005, apresentou em 2008 o projeto de uma instalação que
mereceu condenação internacional unânime. Conhecido
pelas suas instalações sobre a morte, que lembram cenas de crimes, o artista
pretendia expor o momento da morte de um doente terminal, não através de fotos
nem de vídeo, mas com o próprio doente a morrer numa galeria de arte aberta ao
público. Para tal, procurava pessoas com doenças terminais “dispostas a morrer
em público em nome da arte”, voluntários para a complexa experiência de fazer
coincidir o momento da morte com a obra de arte com o objetivo de “captar a beleza da morte” (DN 27/04/2008).
O projeto de Schneider não foi adiante pois visava expor as
reações do próprio público e remexia em velhos tabus - que servem para tapar
pudicamente muitas feridas sociais mal curadas ou já incuráveis.
(4) - Faltou
acrescentar Ron Mueck (genro de Paula Rego) na escultura ou Milo Manara na BD. Também ficou por
referir que a arte erótica é principalmente realista mas que a representação
simbólica da sexualidade faz parte de todas as culturas do mundo.
Alfred Hrdlicka, Monumento ao Assassino, Hanover
1 comentário:
muito obrigado pelo belissimo artigo, relativo a minha obra.
Umbelina Barros
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