sábado, 13 de outubro de 2012

Instalação polémica de Umbelina Barros em Cascais


Há precisamente um ano, a obra “Garrafa das Caldas”, da ceramista caldense Umbelina Barros, foi retirada da 10ª Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro após veementes protestos dos trabalhadores e clientes do Mercado do Peixe José Estêvão, à entrada do qual havia sido colocada. A direção da Bienal ainda procurou um local alternativo para a polémica obra, um falo gigantesco (2,47 metros) de grés vidrado, mas previu igual ou maior contestação e a peça foi desmontada. Na altura, registei e comentei o caso neste blogue, no seguimento de alguns episódios censórios que coligi anteriormente.

No passado dia 3 de outubro, a “Garrafa das Caldas” foi instalada na Casa da Guia, em Cascais, antecedendo uma importante exposição individual da artista, com inauguração marcada para 20 de outubro, e tem sido, ao que me dizem, alvo de críticas e protestos.

Gostar ou não gostar, depende naturalmente do gosto de cada um, que pode ser educado de muitas maneiras, ou simplesmente não ser educado, mas que evolui com desafios deste tipo,   confrontação de sensibilidades, obras de arte que devem ser apreciadas com espírito aberto, afastando preconceitos (pré-conceitos) que possam toldar ou condicionar essa apreciação. Ocorre-me, a propósito, uma frase de João Lobo Antunes: “Embora a definição (de belo) continue a iludir-nos, o conceito de beleza é ainda o valor estético mais seguro” (1). No entanto, convirá não esquecer que as obras polémicas têm motivações e intuitos diversos, que devem ser sempre esclarecidos. Em Portugal, causou alguma polémica a estátua a Alves Redol em Vila Franca de Xira, da autoria de Lagoa Henriques, mas obras polémicas como o monumento ao assassino Fritz Haarmann em Hanover (2) ou o projeto de Gregor Schneider sobre a morte pública de um doente terminal (3) necessitam de ser bem explicadas e desdramatizadas, embora o seu objetivo principal seja esse: provocar reações visando a discussão de ideias e de costumes, a compreensão e consequente destruição de mitos e fantasmas indesejáveis em sociedades evoluídas. Claro que o artista possui atualmente meios muito diversos para se explicar e promover a sua obra, tal como o público possui novos e práticos meios para o questionar, procurar mais informação, mostrar responsavelmente o seu agrado ou desagrado. Porém, o diálogo construtivo é fundamental para o entendimento da obra de arte - e afinal do nosso mundo, repleto de obras e realizações humanas cujo conhecimento e entendimento fariam, de todos nós, melhores seres humanos. 

"A Garrafa, os Percebes e a Imagem", instalação de Umbelina Barros, grés vidrado. Foto: Eurostand

A propósito das críticas e até pressões para que seja retirada a instalação de Umbelina Barros da Casa da Guia, em Cascais, a organização da mostra (Eurostand) solicitou-me um comentário sobre o assunto e enviei o seguinte:

Considero fundamental que a instalação “A Garrafa, os Percebes e a Imagem” continue em exposição, desde logo por defender a liberdade de criação e expressão, mas sobretudo para agitar as mentalidades conformadas e apáticas despertando a discussão sobre o sentido do Belo e a função da Arte na sociedade contemporânea.
Parece-me também importante destacar alguns aspetos que distinguem a apresentação na Casa da Guia desta instalação artística, do que aconteceu na bienal de cerâmica de Aveiro: a precipitada e agressiva intrusão de um elemento fálico no espaço quotidiano de pessoas que o entenderam como ordinário e ultrajante. Em Aveiro, a instalação foi desmembrada, certamente com a aprovação da artista: a “garrafa” foi montada na entrada do Mercado do Peixe, os “Percebes” ficaram no Museu de Aveiro e a “Imagem”, então uma só foto, nem se viu.
O que se mostra na Casa da Guia não é uma obscenidade, um insulto popular, um desrespeito pela instituição e pelos seus visitantes. É um exercício de liberdade de criação, expressão e exposição, uma séria provocação intelectual apresentada num meio cultural que reconhece e valoriza o Nu como Arte, seja na pintura, na escultura ou na fotografia, um meio evoluído incapaz de confundir o célebre (polémico e também frequentemente censurado) quadro de Gustave Courbet, “A Origem do Mundo”, com mera pornografia. E o mesmo se pode dizer de obras de artistas contemporâneos como Lucian Freud, que trabalhou intensamente o nu na pintura, Helmut Newton na fotografia, Ron Mueck na escultura ou Milo Manara na BD (4). O tema do Nu atravessa toda a história da Arte, desde a pré-história à atualidade, constituindo mesmo um género artístico académico. O problema surge quando os dirigentes (políticos, religiosos,...) ou grupos sociais representativos, se acham no direito de limitar ou oprimir os direitos dos restantes, que raramente são a minoria, especialmente numa matéria tão sensível como é a sexualidade, e muito mais quando esta se exprime através da sensualidade e do erotismo.
É possível identificar diversos momentos em que a censura limitou de modo organizado a expressão artística ou mutilou obras de arte (como aconteceu no séc. XVIII, com as célebres parras acrescentadas a pinturas e esculturas), mas já foi pior e em países ocidentais agora conhecidos pelas suas leis e costumes liberais. Em Portugal, têm ressurgido algumas censurazitas moralistas, de sentido difuso, compreensíveis em contexto democrático, uma espécie de jogo de forças de prós e contras. A expressão da nudez e da sexualidade continua no entanto a ser uma questão sensível, a merecer reflexão e os mais diversos estudos especializados. Certo é que a tolerância não deve ser imposta nem a liberdade castigada.

Notas:

(1) - “As Faces de Arcimboldo”, in “Memória de Nova Iorque e Outros Ensaios”, Gradiva, 2002).

(2) - Fritz Haarmann, um dos piores assassinos da história criminal da Alemanha, foi condenado à morte e executado em 1925. No final dos anos 80, o município de Hanover encomendou ao escultor e artista gráfico austríaco Alfred Hrdlicka  (1928-2009), um monumento (ver imagem ao fundo) para evocar o seu mau exemplo e lembrar que a maldade e a desumanidade surgem onde menos se espera, no caso a cidade onde o assassino residiu. Nada de mais, se nos recordarmos das razões apontadas para a exposição pública em Paris da escultura de 5 metros “Coup de Tête” (“A Cabeçada”) da autoria do escultor argelino Adel Abdessemed, que representa o fim da carreira futebolística de Zidane (França-Itália, final do Mundial de 2006). O autor da estátua de Hanover também era conhecido pelas suas obras polémicas, algumas das quais foram censuradas, mas após um esclarecimento da então ministra da Cultura da Alemanha os cidadãos reconheceram que a obra de Hrdlicka poderia ser uma mais-valia para a cidade, que não deveria negar o seu passado histórico.

(3) - O alemão Gregor Schneider (n. 1969), que já expôs em Serralves em 2005, apresentou em 2008 o projeto de uma instalação que mereceu condenação internacional unânime. Conhecido pelas suas instalações sobre a morte, que lembram cenas de crimes, o artista pretendia expor o momento da morte de um doente terminal, não através de fotos nem de vídeo, mas com o próprio doente a morrer numa galeria de arte aberta ao público. Para tal, procurava pessoas com doenças terminais “dispostas a morrer em público em nome da arte”, voluntários para a complexa experiência de fazer coincidir o momento da morte com a obra de arte com o objetivo de “captar a beleza da morte” (DN 27/04/2008). O projeto de Schneider não foi adiante pois visava expor as reações do próprio público e remexia em velhos tabus - que servem para tapar pudicamente muitas feridas sociais mal curadas ou já incuráveis.

(4) - Faltou acrescentar Ron Mueck (genro de Paula Rego) na escultura ou Milo Manara na BD. Também ficou por referir que a arte erótica é principalmente realista mas que a representação simbólica da sexualidade faz parte de todas as culturas do mundo. 

Alfred Hrdlicka, Monumento ao Assassino, Hanover

1 comentário:

depoisdaterra disse...

muito obrigado pelo belissimo artigo, relativo a minha obra.
Umbelina Barros