sexta-feira, 22 de maio de 2009

Centenário da Electricidade em Seia

Antiga sede da EHSE, no Largo Marques da Silva

Em Dezembro de 2009 passam 100 anos sobre a criação da Empresa Hidroeléctrica da Serra da Estrela e da electricidade em Seia, dois acontecimentos de grande relevo para o concelho que se encontram interligados.
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No Natal de 1909, a iluminação pública na então Vila de Ceia deixou de se fazer a petróleo e a noite tornou-se “brilhante como o dia” graças às lâmpadas de incandescência com poder iluminante de 16 velas e às lâmpadas de arco voltaico de 600 velas. Apesar do crescente progresso de Seia ao longo do século XX, essa novidade demorou a chegar a todo o concelho: a última localidade a receber a luz eléctrica foi Relvas, Póvoa Nova, em 23 de Janeiro de …1997 (1).

A facilidade actual de acesso ao usufruto da electricidade e a sua abundância induz-nos a tomar a energia eléctrica por um bem trivial, só a valorizando plenamente quando falta e desperdiçando-a muitas vezes sem hesitação nem remorso. No início do século XX, porém, a electricidade para todos não passava ainda de uma promessa, tal como escreveu Emile Zola em 1901: “Irá chegar o dia em que a electricidade será para todos, como a água dos rios e o vento dos céus. Não deve ser apenas fornecida, mas sim em abundância, para que as pessoas a usem segundo a sua vontade, como o ar que respiram.”

As experiências eléctricas, embora marcadas pela fraca intensidade da corrente e insuficiência dos meios, com geradores sujeitos a constantes avarias e material de iluminação muito limitado, anunciavam já no final do século XIX uma completa revolução em todos os domínios da vida humana rumo a um verdadeiro progresso. A electricidade passou então a ser uma justa aspiração de todos, que avidamente lutaram pela chegada da electricidade às suas terras, assim como motivo para autênticas guerras empresariais e comerciais, desde a localização das centrais hidroeléctricas até às batalhas quase campais pelas concessões, passando pelas querelas entre os adeptos da Corrente Contínua e os defensores da Corrente Alternada.

Em Seia, a disputa pela concessão foi muito breve e teve apenas dois intervenientes, António Marques da Silva e António Rodrigues Nogueira, com quem a Câmara Municipal desse tempo (presidida pelo Dr. António Augusto da Fonseca Saraiva) celebrou contratos distintos, talvez encantada com as vantagens oferecidas pela proposta do engenheiro Rodrigues Nogueira e para tirar partido da concorrência entre concessionários, ou ainda para acalmar fervores e rivalidades locais, como refere J. Quelhas Bigotte na sua Monografia de Seia.

A rivalidade entre Seia e Gouveia era então uma questão de honra e “coincidência ou não”, como escreve Lúcia Moura (obra cit, pág. 36), a Câmara Municipal de Seia decidiu abrir um concurso para instalar a energia eléctrica na sede do concelho no mesmo mês em que Gouveia inaugurou a iluminação pública eléctrica: Janeiro de 1903.

Apesar de todos os esforços, não apareceu qualquer concorrente nos dois primeiros concursos e a Câmara senense só voltou a abrir concurso para a iluminação eléctrica em Outubro de 1906, tendo então aparecido António Marques da Silva, industrial de Gouveia, onde nascera a 26 de Julho de 1868.

Segundo J. Quelhas Bigotte, a pág.s 214 da obra citada, o contrato celebrado com António Marques da Silva a 5 de Dezembro de 1906, aprovado por Decreto em 07 de Fevereiro de 1907, cedia ao concessionário o direito e posse de todas as águas do Rio Alva e da Ribeira da Caniça que quisesse utilizar, assim como os terrenos industriais atravessados pela captação e entre os leitos das ribeiras. Em contrapartida, Marques da Silva obrigava-se a fornecer energia eléctrica para a iluminação pública e particular e para as indústrias de Seia e do concelho durante 35 anos. A iluminação pública em Seia limitava-se a um raio de mil metros com centro na Câmara Municipal – então situada na actual Praça da República (2) - mas que abrangia então toda a Vila. De início, a iluminação pública custaria anualmente ao município 6500 réis por cada lâmpada de 16 velas, num total de 100 lâmpadas, com oferta da iluminação de duas lâmpadas de arco voltaico a instalar no então largo da Câmara, ou seja, a entrada da actual Praça da República (3). De referir que, na época, um jornal diário custava em média 10 réis e um litro de azeite, 320. O contrato de concessão limitava ainda o custo do quilowatt para particulares e usos industriais e não impedia a electrificação de outras localidades do concelho.

Colégio de Música no antigo edifício da Câmara Municipal de Seia

Em Outubro de 1907, quando já decorria a construção de açudes e levadas no rio Alva, a Câmara Municipal recebeu uma proposta de António Rodrigues Nogueira, capitão do estado-maior de engenharia, residente em Lisboa, que pretendia a concessão da exploração das águas da bacia hidrográfica da Lagoa Comprida e a cedência de terrenos para as obras que julgasse necessárias. O proponente pagaria à Câmara cinco contos de réis, para além de uma renda anual de 400 mil réis até ao final do contrato de Marques da Silva, em 1942, após o qual forneceria gratuitamente 100 lâmpadas de 16 velas e duas lâmpadas de arco voltaico de 600 velas cada.


Exemplo de lâmpada de arco voltaico (Foto FPHESP*)

As negociações entre a Câmara e Rodrigues Nogueira arrastaram-se durante meses. Segundo J. Quelhas Bigotte, os termos do contrato de concessão só foram aprovados em 16 de Agosto de 1908. Entretanto, constou que haveria interesses estrangeiros em jogo e o jornal Correio de Ceia chegou a noticiar, em Setembro desse ano, não só o nome da empresa, “Societé Hydro-électrique Estrella”, como o seu capital garantido: seis milhões de francos.

Esta empresa nunca chegou a constituir-se mas, a 07 de Julho de 2009, os dois concessionários uniram meios e esforços numa nova sociedade, a "Empresa Hidro-Eléctrica da Serra da Estrela". A escritura foi celebrada em Gouveia e, segundo J. Quelhas Bigotte (citando o Dr. José Nunes Pereira, que foi advogado da E.H.E.S.E.), a Câmara só teve conhecimento oficial desse facto a 09 de Dezembro. Nessa sociedade inicial, participavam António Marques da Silva, António Rodrigues Frade, Guilherme Cardoso Pessoa e António Rodrigues Nogueira.


Central da Senhora do Desterro, São Romão - Seia

Em 23 de Dezembro de 1909, e electricidade fornecida pela central da Senhora do Desterro (entretanto construída) chegava finalmente a Seia, uma das primeiras localidades do país a ter luz eléctrica a partir do aproveitamento hidroeléctrico – 18 anos depois da entrada em funcionamento da primeira central hidroeléctrica (Godalming, Inglaterra) e 6 anos depois da chegada do primeiro automóvel a Seia, adquirido pelo Dr. Elisário Mota Veiga (4).

Como acontecia em todas as vilas que iam aderindo ao “grande melhoramento” da luz eléctrica, houve festa em Seia: “na Câmara uma sessão solene em que foi homenageado M. da Silva; na igreja matriz um Te-Deum de acção de graças e à tarde a inauguração da luz, com grandes manifestações de alegria popular.” (J. Quelhas Bigotte, ob. cit. Pág. 215).

Esse melhoramento estendeu-se logo depois a São Romão (07 de Julho de 1910) e chegou a Loriga em 17 de Novembro de 1912, graças aos esforços de uma “Comissão da Luz”, no ano em António Rodrigues Nogueira iniciou a construção da barragem da Lagoa Comprida.

Em 1910 e 1911, com os ventos da República a aquecerem os ânimos da população, que receava ficar prejudicada com o transporte de energia para as indústrias de Gouveia, quase houve um levantamento popular e a Câmara colocou a empresa em tribunal após alguns cortes de energia terem deixado a vila sem iluminação pública. Este problema só foi resolvido em 1915 com a intervenção do Ministério do Interior, que conciliou as partes sem dar razão a nenhuma delas: Marques da Silva podia levar energia para fora do concelho desde que o fornecimento de electricidade à vila não saísse prejudicado.
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Casa da família Marques da Silva, à entrada da cidade de Seia

Procurando melhorar a sua imagem junto dos senenses, Marques da Silva mudou-se para Seia e envolveu-se intensamente na dinâmica local, contribuindo com inúmeros apoios para o progresso e enriquecimento de Seia. A sua única filha casou com o Dr. António Simões Pereira, que viria a tornar-se exemplo nacional da dedicação à medicina (5).

O Comendador Marques da Silva (6) faleceu em Seia em 1953, aos 85 anos de idade, mas continua a faltar ainda hoje a justa homenagem. O largo em frente ao edifício que foi sede da sua empresa, pertencente à EDP após a nacionalização da E.H.E.S.E. em 1975, recebeu o seu nome mas encontra-se lá colocada, desde 1981, a estátua de Afonso Costa.


Seia à noite (vista parcial)

Em Março de 1999, a Câmara Municipal aprovou uma proposta de homenagem da cidade de Seia a Marques da Silva nos 90 anos da fundação da Empresa Hidroeléctrica da Serra da Estrela. A proposta de homenagem incluía a mudança da estátua de Afonso Costa para a rotunda da Central de Camionagem (onde viria depois a ser construída uma fonte luminosa, que lá continua, sem graça), para dar lugar ao busto de Marques da Silva. Na altura, o jornal Notícias da Serra (7) acrescentou, oportuno, que assim até se mudavam as estátuas para os lugares certos, uma vez que "a estátua de Afonso Costa está no Largo Marques da Silva e o busto de Marques da Silva está na Avenida Afonso Costa".

Não será esta a oportunidade (100 anos da criação da E.H.E.S.E. e da inauguração da electricidade em Seia) para, pelo menos, se corrigir de vez este inusitado – mas teimoso – desacerto?

Sérgio Reis

(1) - Jornal Porta da Estrela Nº 455 - Janeiro de 1997.

(2) – Onde hoje se encontra instalado o Colégio de Música de Seia e funcionava o Pólo de Seia do IPG. Só em Março de 1919 os Paços do Concelho passaram para o Palácio das Obras, adquirido a 01 de Setembro de 1918 por decisão da Câmara então presidida pelo Dr. Borges Pires.

(3) - Até 1916, o largo da Câmara, depois Praça da República era apenas um pequeno espaço em frente ao edifício, ligado ao actual Largo da Misericórdia por duas ruas, a Rua Direita - do lado da actual sede do PNSE - e a Rua Esquerda - do lado oposto. Júlio Vaz Saraiva fez uma reconstituição da planta dessa zona "à data do incêndio que devastou o quarteirão de casa entre as Ruas Direita e Esquerda, em 27 de Outubro de 1916", editado pelo Museu do Brinquedo de Seia em formato postal no âmbito de uma exposição temporária de homenagem aos Bombeiros, em 2004.

(4) - "O Fidalgo da Família Correia (Casa da Sobreira), José Tavares Correia de Carvalho, ed. autor, 1982, pág. 25.

(5) – Vitimado pelo Tifo em Maio de 1927, após tratar alguns doentes em Loriga, onde grassava uma epidemia.

(6) – Comendador da Ordem de Mérito Agrícola e Industrial (Classe de Mérito Industrial) em 1943.

(7) - Nº 01, Série II, 12 de Março de 1999, mas também o Jornal de Santa Marinha Nº 142, de 01 de Março de 1999.

Fontes: "O Concelho de Seia em Tempo de Mudança", Maria Lúcia de Brito Moura; "Monografia da Cidade e Concelho de Seia", J. Quelhas Bigotte (Seia, 1986); "Histórias de Senaserra, Marques da Silva - o genial criador da Hidroeléctrica da Serra da Estrela", de Hermano M. Santos, Jornal de Santa Marinha Nº 140, 01 de Fevereiro de 1999; "História dos Grandes Inventos", SRD; "Portugal Século XX", de Joaquim Vieira, vol. I, Círculo de Leitores. * Foto de uma das lâmpadas de arco voltaico que iluminaram São Paulo entre 1888 e 1920 - Fundação Património Histórico da Energia de São Paulo, Brasil.

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