Muitas das obras de arte atualmente consideradas obras-primas da Arte Universal, admiradas, estudadas, interpretadas, exibidas como exemplos, provocaram a indignação da sociedade do seu tempo, foram censuradas e alteradas ao sabor de ideais moralistas, serviram amiúde de pretexto para exaltar indivíduos e grupos, nem sempre justamente, ou para os perseguir e condenar sem piedade. Foi esse o preço do arrojo criativo dos artistas dessas épocas, que gerou mitos, lendas, santos, fantasmas e alguns mártires .
Hoje, a provocação pode servir uma ideia estética, visando, entre muitos outros objetivos, desgostar o espectador (Mark Rothko, por exemplo), confundir o público (Julian Schnabel, idem), horrorizar (Rudolf Schwarzkogler, ibidem) ou “irritar os estúpidos” (Eduardo Batarda), validando estéticas de certo modo marginais - como as estéticas do feio e do horrível, que não enjeitam as ferramentas da publicidade negativa. Outros artistas preferem, ou assumem por acréscimo, a provocação como estratégia de comunicação, para chegarem às massas pelo megafone do escândalo, e as suas obras chegam mesmo a ser aproveitadas para promover eventos, direcionando polémicas ou servindo de arma de arremesso em guerrilhas nem sempre do âmbito artístico.
Entre os casos mais recentes, lembremos o brasileiro Gil Vicente (n. Recife, 1958), cujas obras controversas ajudaram a promover a Bienal de São Paulo 2010. Vicente apresentou na bienal uma série de desenhos intitulada “Inimigos”, nos quais se autorretrata assassinando políticos brasileiros como Lula da Silva ou Fernando Henrique Cardoso e ameaçando com uma pistola o Papa Bento XVI, o presidente do Irão, a rainha da Inglaterra e o ex-primeiro ministro de Israel, Ariel Sharon. A Ordem dos Advogados do Brasil considerou o conteúdo dos desenhos como uma "apologia ao crime" e exigiu a retirada das obras, argumentando: “Ainda que uma obra de arte expresse a criatividade de seu autor livremente e sem limites, deve haver determinados limites para a sua exposição pública”. As obras não foram retiradas e a bienal recebeu um acréscimo inesperado de visitantes.
Outro caso recente, aconteceu nas Filipinas em junho de 2011 e teve como centro uma instalação de Mideo M. Cruz (n. Manila, 1974) intitulada “Politeísmo”, considerada ofensiva. Integrada numa exposição coletiva no Centro Cultural das Filipinas, a obra de grande dimensão (ocupava três paredes) misturava as imagens de Cristo, Maria e José, com símbolos kitsch da cultura pop, entre os quais imagens do rato Mickey, da Estátua da Liberdade e de Barack Obama, e um crucifixo com um pênis móvel. A exposição foi encerrada após a inauguração e o artista recebeu ameaças de morte, apesar de ter declarado que não pretendera ofender mas sim “provocar debates e o pensamento crítico” sobre os mitos contemporâneos. A obra internacional de Mideo Cruz é dominada pela provocação, visando chocar o público com as evidências do realismo social defendido pelo movimento “Kulô”, no qual se integra. Tal como Chris Milado, um dos responsáveis pela polémica exposição, podemos defender que Cruz procura “refletir algo que existe na sociedade”, embora o resultado da ousadia fosse previsível. Que reação esperava o artista do público, colando símbolos do consumismo a representações de Jesus Cristo e da Virgem Maria e expondo o resultado em Manila, a capital do terceiro maior país católico do mundo? O país que, pela Páscoa, envia para o mundo imagens de extrema religiosidade, como autoflagelações sangrentas e crucificações ao vivo. E parece-me legítimo perguntar: teria Mideo Cruz a mesma projeção mediática se realizasse esta exposição em Paris, Londres ou Nova Iorque – cidades onde já expôs o seu trabalho?
Em Portugal, temos também casos recentes e bem distintos, pela sua escala trágica e magnitude bem mais modestas. Eles são já, na verdade, fruto dos tempos, e vão provocando alguma discussão em torno da função social da arte, dos mecanismos de difusão da arte contemporânea e dos critérios de promoção ou de controlo das obras e objetos artísticos. Falou-se mesmo de censura, mas casos como estes permitem segundas leituras e muito espaço para evasivas e planos B.
Em maio de 2010, a exposição de um jovem pintor de Vila do Conde na capela laicizada do Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães, foi encerrada após a inauguração pelo diretor desse espaço museológico, alegando que “as pessoas não aceitaram muito bem a ligação entre o tema e o espaço” (jornal Público). A instalação “Requiem by a young painter”, de Filipe Marques, realizada em 2000 na sequência de uma visita do artista a Auschwitz-Birkenau, tratava as ligações entre o regime nazi e a Igreja Católica e mostrava uma série de retratos de oficiais nazis colocados em volta do retrato do papa Pio XII. Naturalmente, foi arrojado da parte do artista encaixar num espaço religioso, mesmo que encerrado ao culto, a materialização de uma culpa de que o vaticano ainda não se redimiu e que magoa todos os católicos, tal como os judeus sentem algum desconforto quando os associam à morte de Jesus, ou os muçulmanos evitam falar dos atentados de 11 de setembro. Felizmente, a Associação Artística Vimaranense não concordou com a censura imposta a Filipe Marques pelo diretor do museu/monumento nacional, que preferiu encerrar a exposição a colecionar reclamações dos visitantes pagantes, e ofereceu de imediato a sua sede para mostrar sem reparos a instalação condenatória do jovem pintor vila-condense.
Outro caso, muito recente, foi o cancelamento da exposição de João Pedro Vale (n. Lisboa, 1976) e Nuno Alexandre Ferreira, ainda antes da inauguração, marcada para 2 de setembro de 2011 no Espaço Arte, em Lisboa. Quando a Companhia de Seguros Tranquilidade teve conhecimento da temática homossexual da exposição, foi pedido aos artistas que mudassem de tema de modo a não ferir a sensibilidade dos acionistas da companhia. Ora a exposição era o resultado de um projeto desenvolvido pelos artistas nos EUA. Não se muda assim, do pé para a mão, o tema a uma exposição, fosse por um imprevisto sinistro ou para agradar aos acionistas. Os artistas consideraram o caso uma “questão de homofobia” e acusaram a Tranquilidade de censura, com o apoio do Bloco de Esquerda. Intitulada “P-Town”, a exposição vai abrir finalmente a 8 de novembro 2011 na Galeria Boavista, Câmara Municipal de Lisboa.
Há poucos dias, as peixeiras de Aveiro exigiram a retirada de uma escultura em grés de Umbelina Barros (n. Caldas da Rainha, 1974) da entrada do mercado do peixe José Estevão. Intitulada “Garrafa”, a obra representa um falo das Caldas com 2,47 metros e foi ali colocada para promover a 10ª Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro (1 de outubro a 13 de novembro). A artista argumentou que “não era intenção ofender”, “é uma obra escultórica e não um insulto”, mas colocar um pénis gigante à porta das peixeiras aveirenses deu no mesmo que expor “Politeísmo” de Mideo Cruz em Manila. A vereadora do pelouro da cultura, Maria da Luz Nolasco, aceitou retirar a obra, que foi desmontada e levada de volta para as Caldas, mas Umbelina Barros colocara “a bienal de cerâmica de Aveiro no mapa” (TVI24). Resta acrescentar que a ceramista caldense participava na bienal com essa obra por convite da Câmara Municipal, como foi aliás noticiado.
No entanto, a polémica em torno da X Bienal de Cerâmica de Aveiro não se reduz à curiosa “garrafa” caldense, alargou-se à própria organização da mostra, com Maria da Luz Nolasco novamente no epicentro. A vereadora da cultura (que foi conservadora do Museu de Aveiro/Santa Joana até 2009 e diretora geral do Teatro Aveirense desde 2005), resolveu aproveitar os seus dotes criativos e utilizar como suporte das obras expostas, velhos eletrodomésticos recuperados e pintados com cores vivas. No seu blogue, no texto “Monstros em vez da bienal de cerâmica”, a ceramista Sofia Beça critica a opção e explica como os artistas participantes foram prejudicados com a “instalação” de Maria da Luz Nolasco na bienal.
Serão estes artistas controversos, de facto irreverentes, provocatórios, inspiradores? Ou inteligentes e arrojados estrategas de marketing? Ou serão ambas as coisas, uns melhor que outros – ou, pelo menos, com diferente atrevimento?
Quando são apanhados no rebentamento da onda que eles próprios criaram, ou ajudaram a criar, nem todos assumem imediatamente a irreverência artística, o arrojo criativo, o gosto de “chocar”, como seria de esperar e eticamente desejável – até para ocuparem com dignidade o devido lugar na história. Antes disso, mostram-se surpreendidos com as repercussões do caso. Que não queriam ofender. Que não aceitam ser censurados. Poucos podem refugiar-se no silêncio e no anonimato – como os 12 autores das caricaturas de Maomé em 2005, por exemplo, ou o fugidio autor do báculo fálico da estátua de D.João Peculiar em Braga (2003). O caso das caricaturas de Maomé, é um dossier condenado a ficar para sempre incompleto. Quanto à estátua do arcebispo de Braga que coroou D. Afonso Henriques como primeiro rei de Portugal, vinha gente de toda a Península Ibérica em busca da galhofa e da fotografia comprometedora. “Todos entendemos a questão da estátua e do báculo”, disse D. António Dias, bispo auxiliar da diocese, antes da retirada da estátua do local, em 2007. E rematou: “É uma escultura infeliz”.
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