sexta-feira, 14 de maio de 2010

"Sem Título: ...?", de Ricardo Cardoso

A performance de Ricardo Cardoso decorreu hoje, como pevisto, no espaço da sua exposição individual, na galeria de exposições temporárias do Posto de Turismo de Seia, com a presença de alguns amigos e curiosos. VER no YouTube.
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A PERFORMANCE

Numa sociedade produtora e reprodutora de lixo e detritos...
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... o jovem artista licenciado para produzir “obras de arte” trabalha incansavelmente mas sem o devido reconhecimento e merecida retribuição.

A revolta acumulada perante tal situação reflecte-se inicialmente na sua obra.

A fúria expressiva conduz à destruição da obra.

A negação da obra provoca a “morte” do artista, “que terá de se encaixar na sociedade de uma outra forma”.


No final da performance, o artista distribuiu pelos presentes o “Manifesto do nada”, apresentando e justificando a acção.

Intitulada ironicamente “Sem Título: ...?”, a performance questionava o papel do artista contemporâneo perante as exigências e contingências do mercado de arte, em particular as dificuldades sentidas pelos jovens artistas para se afirmarem num meio formalizado e muito concorrencial, nem sempre regido por normas claras e iguais para todos.

A maior parte dos jovens artistas sente hoje esta dificuldade, que nada tem a ver com talento ou com factores operacionais estritamente artísticos, entre os quais o interesse dos projectos. Muitos jovens artistas apagaram-se, ou deixaram-se apagar, da lista. Outros, protestaram. Alguns, simplesmente morreram. Eis alguns casos.

O enigmático Alvarez

O galego Dominguez Alvarez (1906-1942) naturalizou-se português para escapar à Guerra Civil Espanhola. Formou-se em pintura em 1940, com 20 valores, na Escola de Belas Artes do Porto. Era um personagem estranho, que fabricava e modificava as próprias tintas e pintava numa espécie de cave, um pequeno espaço que parecia “a casota de um cão” (Noémia Delgado, realizadora de “Quem Foste, Alvarez?”). Em 1939, o Secretariado da Propaganda Nacional recusou as suas obras na IV Exposição de Arte Moderna, apesar dos protestos de Mestre Dórdio Gomes, professor de Alvarez nas Belas Artes, e só aceitou expôr uma das suas obras em 1940. Morreu de tuberculose em 1942, aos 36 anos, e as suas obras não assinadas foram autenticadas por terceiros e avidamente disputadas após o seu desaparecimento.

Mário Silva contra o “fisco”

Em 1988, Mário Silva queimou parte da sua obra em frente à Câmara Municipal da Figueira da Foz, em protesto contra a avidez do fisco. Anos depois, noutra acção de protesto pelos mesmos motivos (embarcou num barco de pesca para rumar simbolicamente a Espanha), o artista explicou que só queimara os quadros de que não gostava.

Paulo Oliveira no Centro Cultural de Belém

Na tarde do dia 25 de Abril de 1994, o jovem pintor Paulo Oliveira queimou parte da sua obra frente ao Centro Cultural de Belém, protestando contra a falta de apoios intitucionais e alertando para a situação dos jovens artistas em Portugal. À imprensa, Paulo Oliveira disse: “Faz 20 anos que ficámos livres do obscurantismo, que ganhámos a liberdade de expressão, e nós, jovens artistas, só encontramos barreiras”.

A alternativa é – sugere Ricardo Cardoso – a “prostituição intelectual”, mas nem todos estarão dispostos a tanto, pois abdicar de alguns princípios estruturantes da personalidade pode ser desastroso para o artista – tal como aconteceu ao jovem “graffiter” americano de origem latina, Jean-Michel Basquiat (Brooklin, Nova Iorque, 1960-1988), que se tornou em poucos anos um dos mais famosos e controversos pintores neo-expressionistas de projecção internacional – uma espécie de EMINEM das artes mas ao contrário. Basquiat foi o primeiro artista negro a triunfar verdadeiramente no meio artístico americano e internacional.

A solidão de Basquiat

Conhecido como “SAMO” (“Same Old Shit”) entre os graffiters do bairro e “descoberto” pela intelectualidade vanguardista nova-iorquina, Basquiat sacrificou as suas raízes e os seus amigos ao sucesso. Quando alcançou a fama, com exposições em Nova Iorque e nas principais capitais europeias e com os maiores coleccionadores e museus a disputarem as suas obras, os seus antigos amigos de bairro escreveram por todo o lado “SAMO morreu”.

Apesar do seu sucesso, Basquiat sentia-se perseguido pela solidão, desacreditado pelos seus antigos amigos e acreditando que as pessoas não o aceitavam como ele realmente era. Morreu paranóico em 1988, aos 27 anos, de speedball (mistura de cocaína e heroína), no seu estúdio em Nova Iorque.

Orfeu no Inferno – ou o caso de Santa-Rita Pintor

História bem diversa deve-se a Santa-Rita Pintor (Lisboa, 1889-1918), o primeiro futurista português. O jovem artista condenou o seu tempo e os seus contemporâneos condenaram-no também. Em 1910, perdeu a bolsa que lhe permitia estudar Belas Artes em Paris, devido às suas ideias monárquicas e mau relacionamento com pessoas influentes, entre as quais se contava o embaixador português – mas também o pintor Amadeo de Souza-Cardoso, que criticava por usar o dinheiro do pai para viver “à larga” em Paris e fazer amigos. Defensor dos jovens artistas contra a apatia da velha geração, foi um dos organizadores do grande congresso de jovens artistas e escritores de 1915. Desiludido com o seu tempo, Santa-Rita Pintor deixou como última vontade que as suas obras fossem queimadas depois de morrer, o que sucedeu em 1918 – no mesmo ano em que Souza-Cardoso faleceu de gripe, em Espinho. Sobreviveram apenas 2 pinturas do artista: “Orfeu no Inferno” e “Cabeça”.

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“O mundo da arte pode tornar-se formalizado” e “tal formalidade é uma ameaça à fescura e à exuberância próprias da arte”.

George Dickie (citado por Ricardo Cardoso no “Manifesto do nada”)

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