domingo, 4 de agosto de 2013

O enigmático João Hilário Pinto de Almeida


João Almeida, Raias, "Estado Actual das Pescas..."

Quem se aventurar pela leitura de velhos livros, para além de tropeçar frequentemente em vetustas ortografias e expressões em latim, encontra inevitavelmente as estampas – ou gravuras – que procuravam ilustrar esses textos antigos e atingiram patamares de excelência no século XIX com, por exemplo, Gustave Doré  (1832-1883).

Ainda no início do século XX, as notícias dos jornais eram ilustradas com desenhos (1), enquanto as reproduções fotográficas faziam já o sucesso de revistas ilustradas famosas, como a “llustração Portugueza” (1903-1923) ou a “Illustração Sportiva” (1915), que davam primazia à reportagem fotográfica - série de fotografias sobre o mesmo acontecimento. A vulgarização da reprodução fotográfica permitiu o regresso da gravura à edição como arte, que servira para democratizar o acesso à obra de arte após a Revolução Francesa, agora com tiragens muito limitadas.

No século XIX, a gravura era o meio mais simples, expedito e económico para obter cópias de um desenho original, fosse obra artística ou simples apontamento jornalístico, e o ofício de gravador era muito especializado e reconhecido. O próprio ensino artístico estava orientado para a ilustração, dando ênfase ao desenho e pintura de temas históricos. Nas estampas (2), o nome do artista/desenhador aparecia do lado esquerdo e o gravador inscrevia o seu nome no lado direito, ficando assim a obra duplamente autenticada.

Tudo isto vem a propósito de um artista cujo nome tenho encontrado repetidamente nas últimas semanas e acerca do qual existe muito pouca informação. Mais: a dado trecho, deixou-se de saber dele, desconhecendo-se inclusive onde e quando faleceu. Refiro-me a João Hilário Pinto de Almeida, autor dos desenhos das centenas de estampas que ilustram obras como “O Minho Pittoresco”, de José Augusto Vieira (1886-87), ou “Estado Actual das Pescas em Portugal, comprehendendo a pesca marítima, fluvial e lacustre em todo o continente do reino, referido ao anno de 1886”, do comandante António Arthur Baldaque da Silva (1892). Autênticas empreitadas artísticas, não só pela quantidade mas sobretudo pela qualidade, os trabalhos de ilustração destas obras ocuparam certamente o autor durante muito tempo, implicando diversas deslocações pelo país. No caso das ilustrações do “Estado Actual das Pescas…” nota-se alguma imprecisão de pormenor nos desenhos relativos ao norte do país, cujas respostas ao inquérito nacional sobre as pescas não terão chegado a Lisboa, obrigando a alguma improvisação generalista, mas o retrato do Minho no século XIX saiu preciso – e comovente, à distância de 127 anos.

Nascido em Arruda dos Vinhos no ano de 1847, João Almeida deve ter revelado vocação precoce para o desenho pois foi matriculado, aos 12 anos, na Aula de Desenho Histórico de Miguel Ângelo Lupi, como aluno voluntário. Cinco anos depois, em 1864, foi distinguido com o Accessit (3) ano concurso anual da Aula de Desenho Histórico, na secção de Desenho Vivo. Paralelamente, frequentou as aulas de Desenho de Arquitetura.

Terminados os estudos de Desenho, ingressou no Curso de Pintura Histórica. Em 1867, participou na 6ª Exposição da Sociedade Promotora de Belas Artes com pintura a óleo e começou a preparar uma obra de pintura para o concurso trienal da Aula de Pintura Histórica, que terminou em fevereiro de 1868. A obra foi rejeitada pelo júri e João Almeida desistiu do curso e não regressou à Academia.

Trabalhou como desenhador e ilustrador, colaborando em diversas publicações periódicas e ligando-se depois ao ensino técnico. Ilustrou em 1886 a obra em dois volumes “O Minho Pitoresco”, para a qual realizou mais de 300 desenhos, e depois “O Estado Actual das Pescas…” , também profusamente ilustrado. Esta obra é, na realidade, o relatório da comissão nomeada a 13 de maio de 1868 pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, para se apurar a situação das pescas nacionais e o Comandante Baldaque de Silva era figura destacada nesse grupo de trabalho. As ilustrações de João Almeida são uma parte fundamental da obra, muito descritiva e baseada em dados concretos – pois o poder político tinha descoberto as virtudes dos inquéritos e das estatísticas – mas é provável que o artista tenha realizado esse trabalho como funcionário da Direção Geral do Comércio e Indústria, organismo de que dependia o ensino técnico. De resto, terá sido nomeado diretor da Escola Industrial Marquês de Pombal em 1888 pelo Diretor Geral do Comércio e Indústria de então, o Conselheiro Ernesto Madeira Pinto, destacado sócio fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A história de João Hilário Pinto de Almeida perde-se aqui para quem gostaria de conhecê-la melhor, restando a notícia da sua nomeação a 26 de julho de 1889 “para visitar as escolas industriais francesas e estudar os métodos de ensino aí praticados” (4). Terá desistido da carreira artística para participar no desenvolvimento do ensino técnico e industrial em Portugal?

Apreciado como artista pelo que se conhece da sua obra, João Hilário Pinto de Almeida merecia ser mais conhecido - mas é bem possível que ele próprio tenha empreendido algum esforço para se ocultar da história. No "Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses", Fernando de Pamplona refere-se sumariamente a João Almeida, terminando com um enigmático “etc.”

Ilustração de João Almeida em "O Minho Pittoresco"

Ilustração de João Almeida em "Estado Actual das Pescas..."

Notas:

(1)-Ainda hoje isso acontece, quando há necessidade de mostrar imagens de acontecimentos que não foi possível fotografar, havendo artistas especializados em cenas de tribunal, por exemplo.

(2)-Não é por acaso que, ainda hoje, os termos desenho, ilustração, gravura ou estampa, passem quase por sinónimos na linguagem corrente, pois eles representam na realidade as várias fases do processo de reprodução de imagens através da(s) técnica(s) da gravura. Tudo começa com a necessidade de produzir uma imagem para ilustrar um dado texto, que o desenhador interpreta com mais ou menos liberdade criativa. Seguidamente, entra em campo o gravador para fixar o desenho numa placa de madeira, metal ou pedra – a matriz. Essa placa é depois tintada e o impressor estampa em papel a imagem que ela contém, utilizando uma prensa manual ou processos mecânicos industriais. Se a reprodução tiver carácter artístico, com supervisão do artista durante todo o processo e tiragens muito limitadas, o termo mais indicado é “gravura”. De outro modo, tratando-se de tiragens industriais, falamos de “estampas”.

(3)-A distinção atual mais próxima deste prestigiado prémio académico, hoje em desuso, é a Menção Honrosa.

(4)-Do conteúdo de uma carta de Cardoso Marta, disponível na internet.

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