sábado, 9 de julho de 2011

NA COZINHA DOS ARTISTAS



Pieter Bruegel, o Velho – “O Alquimista”, gravura, c. 1558


A química e a arte (1)


A resolução nº 63 da UNESCO consagrou o ano de 2011 à Química, ciência indispensável no desenvolvimento do conhecimento humano. Um dos principais objectivos do AIQ é incrementar o interesse dos jovens pela Química.


A relação da arte com a química é a mais antiga entre todas as disciplinas científicas. As suas origens encontram-se interligadas e as interações são evidentes ao longo dos séculos da História. A descoberta, seleção e mistura de materiais, para além da compreensão das características dos suportes, impulsionaram a diversidade e o apuramento das técnicas expressivas, alargando o espaço de intervenção criativa dos artistas. Além disso, a química assegura grande parte da investigação científica das obras de arte. Explica, por exemplo, como chegaram até ao nosso tempo as pinturas de Lascaux ou Altamira, e permite hoje garantir, com reduzida margem de erro, a autenticidade de uma obra de autoria duvidosa. A química é ainda fundamental na conservação e restauro de peças artísticas históricas, quase todas insubstituíveis no contexto da memória coletiva que alicerça a identidade dos povos e da Humanidade em geral.
Trinta e cinco mil anos antes da nossa era, o homem já conhecia alguns pigmentos naturais e conseguia modificar os tons das terras, pela ação oxidante do fogo. Conheciam alguns ocres amarelos – predominando a goetite (a-FeO(OH), vermelhos - hematite (Fe2O3) e terra de sombra /terra de Úmbria – uma mistura de goetite + hematite + manganês (MnO2). O manganês natural e o carvão forneciam o preto. Os minerais eram moídos e misturados com água e aglutinantes orgânicos. Estes pigmentos ainda hoje são produzidos e utilizados, com novas técnicas e aglutinantes modernos, mas a maior parte das tintas que utilizamos são já sintéticas, ou seja, compostos artificiais obtidos por processos químicos.


O azul egípcio (CaCuSi4O10) foi o primeiro pigmento sintético. Surgiu no Egito antigo, no 3.º milénio a.C., e foi utilizado em todo o império romano. Nesse tempo e na Idade Média, as cores mais preciosas eram produtos de alquimista. O vermelho puro e quase sagrado, usado nos ícones religiosos para pintar o manto da virgem, era sulfato de mercúrio - uma substância infernal (mercúrio + enxofre), nascida de uma cozedura a alta temperatura e depois triturada e moída repetidamente. O pigmento ultramarine, outra cor incontornável na pintura religiosa, derivava do brilhante e dispendioso pó de lápis-lazúli, que continha lazurita ((Na,Ca)8(AlSiO4)6(S,SO4,Cl)1-2).


As tintas foram desenvolvidas ao longo dos séculos, com novos pigmentos, aglutinantes e aditivos, proporcionando a adoção de novos suportes. É assim que a têmpera (pigmentos com aglutinante de gema de ovo) aparece ligada à delicada pintura dos ícones religiosos e às iluminuras dos pergaminhos, enquanto os pigmentos com óleo (tinta de óleo) surgem em suportes robustos de madeira, nos retábulos medievais, ou em grossas telas esticadas em grades de madeira, desde o Renascimento. Outro suporte típico da expressão artística, o papel, foi progressivamente melhorado com novos aditivos e processos químicos de acordo com as suas diversas utilizações.


No século XIX, o interesse científico e as exigências da industrialização proporcionaram autênticas revoluções nas mais diversas áreas da vida humana. Uma delas foi a invenção e produção de cores sintéticas, oferecendo tintas uniformes e cores muito vivas, em quantidade e a preços mais acessíveis. Até então, as tintas eram produzidas pelos próprios artistas ou pelos ajudantes e aprendizes na cozinha da oficina, de acordo com receitas que passavam de mestre para discípulo, ou compradas em lojas especializadas, cujas fórmulas de produção de cores eram protegidas pelas associações. Algumas receitas eram caldos perigosos, com inúmeros riscos associados à produção e utilização de certas tintas e cores, sobretudo quando incorporavam substâncias inflamáveis, tóxicas ou contaminantes, como o chumbo (Ph) ou o mercúrio (Hg). O advento das tintas sintéticas permitiu oferecer aos artistas uma alternativa segura, para além de uma nova dimensão plástica da cor.


Inicialmente, a revolução artística despoletada pelo Impressionismo foi muito mal recebida. As novas cores começaram por chocar o público e os meios académicos conservadores, mas dominam hoje o nosso envolvimento visual e orientam os nossos gostos estéticos. Esta consciência alargada da cor deve-se aos estudos e obra de vários artistas e cientistas, desde o funcionamento do mecanismo da visão à conceção em laboratório de novas tintas, hoje enriquecidas com aditivos surpreendentes: aceleradores ou retardadores de secagem, agentes bacteriológicos (antifungos, por exemplo), pigmentos termocromáticos (cores que mudam de tom por ação da luz ou do calor) e até aromas artificiais (tintas aromáticas).


Para entender a arte contemporânea nas suas múltiplas implicações e sentidos, é indispensável considerar o contributo da química ao nível dos materiais, meios e processos da produção artística – desde a simples utilização do fogo ou o cruzamento criativo de materiais, reações fotoquímicas em tela e noutros suportes, reações químicas com polímeros na escultura, até ao recurso a processos bioquímicos – utilizados por artistas como Joseph Beuys ou Dieter Roth – e os novíssimos materiais compósitos biodegradáveis, cuja base pode ser simplesmente o amido, desenvolvidos de modo a imitar as vantagens do plástico sem custos ambientais.


A terminar, uma receita caseira para o Guache (do italiano “Guazzo”, “tinta de água”):


Ingredientes: 100 g de pigmento (à venda nas drogarias); 30 g de glicerina; 60 g de goma arábica.
Preparação: misturar os ingredientes e passar três vezes por uma peneira fina. Cozinhar em banho-maria, mexendo sempre. Conservar numa vasilha de vidro. Para usar, dissolver com água.



Sérgio Reis



(1) - Texto publicado no jornal "Vivências ...", nº3, Junho 2011

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