quarta-feira, 9 de julho de 2014

2014, o ano d’O Grego

Doménikos Theotokópoulos “El Greco”, Autoretrato, 1604

O grande acontecimento artístico ibérico de 2014 são as comemorações do 4º centenário da morte de Doménikos Theotokópoulos, ou El Greco, pintor nascido na Grécia (Creta) em 1541. Conhecido principalmente pela obra que produziu em Toledo desde 1577, exibida com merecido orgulho nos maiores museus espanhóis e uma referência artística na arte universal, El Greco só adquiriu fama intemporal no final do século XIX, quando foi redescoberto por pintores impressionistas e expressionistas que estudavam as obras de pintura clássica no Museu do Prado.

Apesar de ter pintado para as elites do seu tempo, o facto de ser conhecido por “o grego” e de ter ficado praticamente esquecido durante quase três séculos deve-se sobretudo a uma secundarização do artista em favor da figura maior da pintura espanhola, Diego Velázquez (1599-1660), embora também seja evidente que o pintor emigrante teimava em sublinhar a sua origem assinando as obras com o nome original, difícil de pronunciar e de memorizar. Era então habitual os artistas que se fixavam em países estranhos adotarem nomes locais, como aconteceu em Portugal com os pintores flamengos Francisco Henriques e Frei Carlos, que ficaram na história do Renascimento português.

A originalidade de El Grego reside no modo como combinou aspetos da arte bizantina, do renascimento e do maneirismo, uma sensibilidade estética muito própria (que alguns estudiosos atribuem a doenças oftalmológicas) e a exploração criativa dos limites dos cânones artísticos dominantes nessa época. Viveu alguns anos em Veneza, onde trabalhou com Ticiano (c.1485-1576) e também em Roma, pintando na capital do catolicismo várias obras que lhe deram fama internacional entre os principais encomendadores de arte, os ricos decisores católicos. O Espólio ou O Desnudamento de Cristo,  iniciada no verão de 1577 e concluída em 1579 para o altar da Catedral de Toledo, foi uma encomenda do reitor da Catedral de Toledo, Diego de Castilha, por influência do filho, Luis de Castilha, que estava em Roma e era amigo de El Grego.

Em 1577 foi para Madrid com o objetivo de se tornar pintor da corte do poderoso Filipe II, o único monarca que foi rei de Espanha, da Inglaterra e de Portugal (Filipe I), senhor de territórios que se estendiam até às Filipinas. Após desentendimentos com a corte, El Greco foi chamado a Toledo (capital de Espanha até Filipe II ter mudado a corte para Madrid em 1561) onde pintou obras-primas como “A Ascensão da Virgem” (1579) ou “A Santíssima Trindade” (1579) e acabou por se fixar nesta cidade montando aí uma oficina de pintura em 1585.

As obras-primas emblemáticas de El Grego foram pintadas em Toledo, entre as quais “O Espólio” (1579), o impressionante quadro “O Enterro do Conde de Orgaz” (1587/88) e “Vista de Toledo” (1612), ficando o artista para sempre ligado a esta belíssima cidade, recortada pelo rio Tejo, que partilha com Lisboa. A maior exposição de obras de El Greco jamais realizada foi a principal atração de Toledo entre março e junho de 2014, reunindo dezenas de pinturas oriundas de coleções dos maiores museus do mundo e de colecionadores privados a pinturas que nunca chegaram a sair de Toledo. Nos Espaços Grego, abertos todo o ano, as pinturas encontram-se expostas nos seus lugares originais, para onde foram concebidas pelo artista, regressando algumas delas a esses locais após décadas de ausência.

A evocação de El Grego conta também com a participação de artistas contemporâneos, chamados a criar peças artísticas para a exposição “Toledo Contemporánea”, no Centro Cultural San Marcos, destacando a belíssima cidade histórica – e a Arte Ibérica – nos roteiros turísticos internacionais.

Doménikos Theotokópoulos, “El Grego”, El entierro del Conde de Orgaz, 1587/88, óleo s/tela, 480X360 cm, Igreja de São Tomé, Toledo. Encomendado em 1586 pelo pároco da igreja de Santo Tomé, Andrés Núñez de Madrid, o grandioso quadro era um tributo ao benemérito Senhor da vila de Orgaz, falecido no início do século XIV, evocando o acontecimento prodigioso que, segundo a tradição, terá ocorrido durante a transladação dos seus restos mortais em 1327: durante o enterro, Santo Agostinho e Santo Estêvão desceram do céu para sepultarem com as próprias mãos o Senhor de Orgaz. As exigências da encomenda, muito pormenorizada, limitaram a criatividade do artista na metade inferior do quadro, representando a terra, tendo maior liberdade na parte superior, pintando “um céu aberto de glória”. À procissão de personalidades da época, de Santo Agostinho e Santo Estêvão sepultando o Senhor de Orgaz, e até do próprio filho, retratado no canto inferior esquerdo, El Greco contrapôs um céu de surpreendente irrealidade, desajustado da realidade visível, com cores estranhas à própria natureza, transformando uma mera composição imaginada por um pároco numa obra-prima da arte universal.

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