Doménikos Theotokópoulos “El Greco”, Autoretrato, 1604
O grande acontecimento artístico ibérico de 2014 são as
comemorações do 4º centenário da morte de Doménikos Theotokópoulos, ou El Greco,
pintor nascido na Grécia (Creta) em 1541. Conhecido principalmente pela obra
que produziu em Toledo desde 1577, exibida com merecido orgulho nos maiores
museus espanhóis e uma referência artística na arte universal, El Greco só
adquiriu fama intemporal no final do século XIX, quando foi redescoberto por
pintores impressionistas e expressionistas que estudavam as obras de pintura
clássica no Museu do Prado.
Apesar de ter pintado para as elites do seu tempo, o facto
de ser conhecido por “o grego” e de ter ficado praticamente esquecido durante
quase três séculos deve-se sobretudo a uma secundarização do artista em favor
da figura maior da pintura espanhola, Diego Velázquez (1599-1660), embora
também seja evidente que o pintor emigrante teimava em sublinhar a sua origem
assinando as obras com o nome original, difícil de pronunciar e de memorizar.
Era então habitual os artistas que se fixavam em países estranhos adotarem
nomes locais, como aconteceu em Portugal com os pintores flamengos Francisco
Henriques e Frei Carlos, que ficaram na história do Renascimento português.
A originalidade de El Grego reside no modo como combinou
aspetos da arte bizantina, do renascimento e do maneirismo, uma sensibilidade
estética muito própria (que alguns estudiosos atribuem a doenças
oftalmológicas) e a exploração criativa dos limites dos cânones artísticos dominantes
nessa época. Viveu alguns anos em Veneza, onde trabalhou com Ticiano
(c.1485-1576) e também em Roma, pintando na capital do catolicismo várias obras
que lhe deram fama internacional entre os principais encomendadores de arte, os
ricos decisores católicos. O Espólio ou O Desnudamento de Cristo, iniciada no verão de 1577 e concluída em 1579
para o altar da Catedral de Toledo, foi uma encomenda do reitor da Catedral de
Toledo, Diego de Castilha, por influência do filho, Luis de Castilha, que
estava em Roma e era amigo de El Grego.
Em 1577 foi para Madrid com o objetivo de se tornar pintor
da corte do poderoso Filipe II, o único monarca que foi rei de Espanha, da
Inglaterra e de Portugal (Filipe I), senhor de territórios que se estendiam até
às Filipinas. Após desentendimentos com a corte, El Greco foi chamado a Toledo
(capital de Espanha até Filipe II ter mudado a corte para Madrid em 1561) onde pintou
obras-primas como “A Ascensão da Virgem” (1579) ou “A Santíssima Trindade”
(1579) e acabou por se fixar nesta cidade montando aí uma oficina de pintura em
1585.
As obras-primas emblemáticas de El Grego foram pintadas em
Toledo, entre as quais “O Espólio” (1579), o impressionante quadro “O
Enterro do Conde de Orgaz” (1587/88) e “Vista de Toledo” (1612), ficando o artista
para sempre ligado a esta belíssima cidade, recortada pelo rio Tejo, que
partilha com Lisboa. A maior exposição de obras de El Greco jamais realizada
foi a principal atração de Toledo entre março e junho de 2014, reunindo dezenas
de pinturas oriundas de coleções dos maiores museus do mundo e de
colecionadores privados a pinturas que nunca chegaram a sair de Toledo. Nos Espaços Grego, abertos todo o ano, as
pinturas encontram-se expostas nos seus lugares originais, para onde foram
concebidas pelo artista, regressando algumas delas a esses locais após décadas
de ausência.
A evocação de El Grego conta também com a participação de
artistas contemporâneos, chamados a criar peças artísticas para a exposição “Toledo
Contemporánea”, no Centro Cultural San Marcos, destacando a belíssima cidade
histórica – e a Arte Ibérica – nos roteiros turísticos internacionais.
Doménikos Theotokópoulos, “El Grego”, El entierro del Conde
de Orgaz, 1587/88, óleo s/tela, 480X360 cm, Igreja de São Tomé, Toledo.
Encomendado em 1586 pelo pároco da igreja de Santo Tomé, Andrés Núñez de Madrid,
o grandioso quadro era um tributo ao benemérito Senhor da vila de Orgaz, falecido
no início do século XIV, evocando o acontecimento prodigioso que, segundo a
tradição, terá ocorrido durante a transladação dos seus restos mortais em 1327:
durante o enterro, Santo Agostinho e Santo Estêvão desceram do céu para sepultarem
com as próprias mãos o Senhor de Orgaz. As exigências da encomenda, muito pormenorizada,
limitaram a criatividade do artista na metade inferior do quadro, representando
a terra, tendo maior liberdade na parte superior, pintando “um céu aberto de
glória”. À procissão de personalidades da época, de Santo Agostinho e Santo
Estêvão sepultando o Senhor de Orgaz, e até do próprio filho, retratado no
canto inferior esquerdo, El Greco contrapôs um céu de surpreendente
irrealidade, desajustado da realidade visível, com cores estranhas à própria
natureza, transformando uma mera composição imaginada por um pároco numa
obra-prima da arte universal.
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