sábado, 17 de agosto de 2013

Monumento aos Pescadores de Matosinhos inspirado numa pintura de Augusto Gomes

José João Brito, Grupo escultórico de Homenagem aos Pescadores de Matosinhos, 2005, bronze. Foto: Sérgio Reis

À entrada da praia do Titã, no vasto areal de Matosinhos, cinco grandes figuras de bronze com cerca de três metros de altura evocam a tragédia de 2 de dezembro de 1947, os pescadores que não regressaram da faina e todos os sobreviventes que continuaram diariamente a ir ao mar, enfrentando com destemor as suas fúrias e a saudade dos familiares e amigos então desaparecidos.

O monumento é da autoria do escultor José João Brito (n. Coimbra, 1941), que se baseou numa pintura de Augusto Gomes (n. Matosinhos, 1910-1976). Pela expressão e pose das figuras de José João Brito perpassa o mesmo arrepio de aflição, dor e perda que o pintor matosinhense fixou na tela. Um trabalho largamente conseguido pois a tensão dramática da cena mantém-se vista de qualquer perspetiva – e mesmo do seu interior. Acessível no próprio areal, o monumento permite a circulação entre as figuras, representando as mães, esposas e órfãos dos pescadores levados pelo mar.

José João Brito é formado em escultura pela ESBAP (atual FBAUP). Em 1967, foi-lhe atribuído o Prémio de Escultura “Teixeira Lopes”. Dedicou-se também à cerâmica, pintura, desenho, gravura e medalhística – tendo sido distinguido em 1995 com o prémio da melhor medalha sobre o tema “Descobrimentos Portugueses”, instituído pela Imprensa Nacional Casa da Moeda. As suas obras podem ser vistas na estação do metropolitano de Martim Moniz em Lisboa ou na Murtosa, onde seu pai exerceu medicina.

O naufrágio coletivo de 1947 foi o maior desastre marítimo ocorrido na costa portuguesa. Na madrugada de 2 de dezembro, uma súbita alteração das condições do mar apanhou os pescadores desprevenidos em plena faina. A maior parte deles conseguiu chegar a terra mas quatro traineiras naufragaram. Morreram 152 pescadores, que deixaram 71 viúvas e mais de 100 órfãos. Muitos matosinhenses descendem desses pescadores tragicamente desaparecidos.

O monumento foi inaugurado em 4 de junho de 2005, pelo então presidente da Câmara, Narciso Miranda, com a presença de um sobrevivente do naufrágio e da viúva de um dos pescadores que pereceram no desastre. À data do naufrágio, a economia de Matosinhos baseava-se na pesca, para abastecimento das localidades que fazem hoje parte do Grande Porto e para a indústria conserveira local. 

Augusto Gomes, “Tragédia do Mar”, óleo s/ tela, 124X164cm 

"Tragédia do Mar" / Homenagem aos Pescadores de Matosinhos (pormenores)



José João Brito, Homenagem aos Pescadores de Matosinhos, 2005, bronze. Fotos: Sérgio Reis


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

“Cidadãos do Mundo” vistos por Catalano



O escultor francês Bruno Catalano (n. 1960) criou uma série de esculturas de bronze pintado com o título genérico “Viajantes”. A particularidade das suas esculturas é que o corpo dos viajantes é significativamente reduzido a 3 partes essenciais, que se repetem: o busto e as pernas, ligadas pelo braço e pela mala, de diversos tipos. Viajantes que se fundem na paisagem, aparecendo algures no ato de caminhar, lembrando que algo fica quando se parte e os vazios têm de ser preenchidos com novos conhecimentos e afetos. “Cidadãos do Mundo”, nas palavras do artista.

Natural de Marrocos, Catalano viajou pelo mundo como marinheiro até se fixar em Marselha, uma cidade de viajantes. A sua carreira como escultor começou apenas em 1990 mas o seu trabalho atraiu desde logo a atenção dos críticos e do público.

Em 2013, Marselha é Capital Europeia da Cultura e 10 “Viajantes” de Bruno Catalano poderão ser encontrados no Pavilhão M do porto de Marselha, entre 5 a 30 de setembro.


Arte Concetual em Serralves


Damián Ortega,  "Miracolo Italiano", 2005. Vista explodida de uma Vespa em peças reais.

Para os meses de verão, o Museu de Serralves apostou tudo na arte concetual, mostrando um importante conjunto de peças da Coleção de Serralves, uma exposição antológica de Mel Bochner, um dos fundadores da arte concetual e as projeções subjetivas de Alexandre Estrela. A arte concetual valoriza sobretudo a ideia, o conceito, o projeto que estrutura e suporta a obra – e não apenas o objeto físico, a componente “concreta” que materializa a obra concetual e sinaliza a sua interpretação. “Não existe pensamento sem um suporte de sustentação“, afirma Mel Bochner numa das suas obras expostas em Serralves. Por se afastar do entendimento corrente da obra de arte (um objeto artístico completo e fechado, que se dá simplesmente à observação), a arte concetual é desconcertante, não cria suficiente empatia com o público e por isso torna-se difícil de entender, não tem grande aceitação entre o público em geral. No entanto, suscita experiências artísticas mais complexas e enriquecedoras que a pintura ou a escultura convencionais, mobilizando meios e técnicas mais avançados e próprios do nosso tempo. Basicamente, deve-se a movimentos como a arte concetual a convicção de que a arte do nosso tempo nasce da interação de linguagens e saberes diversos, responsável pela fusão das especialidades clássicas da pintura e escultura através do artista plástico, cujas competências abrangem atualmente a fotografia, o vídeo, as novas tecnologias e até a música. Se a correspondência entre a pintura e a poesia, por exemplo, era inquestionável no século XIX, é hoje comum encontrar-se um artista plástico preocupado com teorias matemáticas ou embrenhado na compreensão dos materiais compósitos. Paralelamente, ao retirar protagonismo à obra física, a arte concetual baralhou as regras tradicionais do comércio artístico, impulsionando áreas expressivas como a poesia visual e a arte postal.

A exposição “Forma conceptual e ações materiais” (até 29 de setembro 2013) apresenta uma seleção de obras pertencentes à Coleção de Serralves e à Coleção de Desenhos da Madeira, realizadas por artistas portugueses e estrangeiros desde o início da arte concetual, na década de 1960. Por este motivo, assim como pela diversidade das abordagens artísticas, contexto histórico e origem geográfica dos artistas, a mostra permite entender a arte concetual nas várias vertentes e suportes – desde as obras em papel até às intervenções no espaço.

A peça mais apreciada pelo público encontra-se logo à entrada: a vista explodida de uma Vespa em peças, intitulada “Miracolo Italiano” e realizada por Damián Ortega em 2005). Esta obra repete a experiência da Vespa explodida em “Cosmic Thing” mas utilizando uma Vespa PX. O Mexicano Ortega (n. Mexico City, 1967) trabalha em Berlim, onde contactou com a obra do alemão Stefan Sous e desenvolveu o seu próprio projeto de formas explodidas. O artista holendês Paul Veroude foi o primeiro a suspender peças de objetos reais em vista explodida, na década de 1980, seguindo-se o alemão Stefan Sous e Damián Ortega. Estes dois artistas trabalham normalmente com cerca de duas centenas de peças e Veroude realizou trabalhos com cerca de 5800 peças. As obras mais conhecidas do holandês são os carros de Formula Um em vista explodida.

Outros artistas representados:  Ana Hatherly, Ana Santos, Ana Vieira, Ângelo de Sousa, António Sena, Armando Andrade Tudela, Dieter Roth, Dimitrije Basicevic Mangelos, Francis Alÿs, Guy de Cointet, James Lee Byars, Jorge Macchi, José Pedro Croft, Joseph Grigely, Julie Mehretu, Lucia Nogueira, Lourdes Castro, Lygia Pape, Manuel Alvess, Mirtha Dermisache, Mark Lombardi, Mona Hatoum, Pedro Cabrita Reis, Rirkrit Tiravanija, Tacita Dean, Trisha Donnelly.

Mel Bochner, “Master of the Universe”, 2010, óleo e tinta acrílica sobre tela (e painéis). Coleção Anita & Burton Reiner, Washington, EUA

A exposição antológica da obra de Mel Bochner, “Se a cor muda” (até 27 de outubro 2013), reúne trabalhos de todas as fases do artista, incluindo instalações e murais. Considerado um dos iniciadores da arte concetual, Bochner (Pittsburgh, EUA, 1940) parte da linguagem para o exercício plástico como intervenção cultural, mobilizando o aspeto visual das letras e palavras, a representação do som, frases correntes e até expressões provocatórias como estratégia de envolvimento do público. “A linguagem não é transparente” e torna-se ainda mais complexa se a cor muda, alterando ligações e conexões emocionais, sociais e até políticas. A exposição foi organizada pela Whitechapel Gallery, Londres, em coprodução com a Haus der Kunst de Munique e com a Fundação de Serralves.

Alexandre Estrela, “Viagem ao meio”, 2010. Os efeitos de luz e som sugerem uma forma natural agitada pelo vento.

"Meio Concreto” é a maior exposição de Alexandre Estrela (n. Lisboa, 1971) até à data e resulta do doutoramento do autor, que teve por tema “O concretismo da imagem em movimento”. Apresentando uma seleção de trabalhos realizados entre 2007 e 2012. Integra dois percursos, materializados pelas peças que são ativadas em dia par ou ímpar – permitindo visitar a exposição noutro dia com o mesmo bilhete. As peças desativadas, sombras mudas no espaço da exposição, adquirem assim interesse escultórico.
O filme e o vídeo são os meios mais utilizados por Alexandre Estrela, cujos trabalhos exploram as potencialidades da câmara, projetor de vídeo e écran. O artista recorre a efeitos visuais para criar equívocos e jogos de sentido, revelados nos textos que acompanham cada peça, desafiando a perceção habitual dos objetos e do espaço. A exposição decorre até 29 de setembro 2013.

domingo, 4 de agosto de 2013

O enigmático João Hilário Pinto de Almeida


João Almeida, Raias, "Estado Actual das Pescas..."

Quem se aventurar pela leitura de velhos livros, para além de tropeçar frequentemente em vetustas ortografias e expressões em latim, encontra inevitavelmente as estampas – ou gravuras – que procuravam ilustrar esses textos antigos e atingiram patamares de excelência no século XIX com, por exemplo, Gustave Doré  (1832-1883).

Ainda no início do século XX, as notícias dos jornais eram ilustradas com desenhos (1), enquanto as reproduções fotográficas faziam já o sucesso de revistas ilustradas famosas, como a “llustração Portugueza” (1903-1923) ou a “Illustração Sportiva” (1915), que davam primazia à reportagem fotográfica - série de fotografias sobre o mesmo acontecimento. A vulgarização da reprodução fotográfica permitiu o regresso da gravura à edição como arte, que servira para democratizar o acesso à obra de arte após a Revolução Francesa, agora com tiragens muito limitadas.

No século XIX, a gravura era o meio mais simples, expedito e económico para obter cópias de um desenho original, fosse obra artística ou simples apontamento jornalístico, e o ofício de gravador era muito especializado e reconhecido. O próprio ensino artístico estava orientado para a ilustração, dando ênfase ao desenho e pintura de temas históricos. Nas estampas (2), o nome do artista/desenhador aparecia do lado esquerdo e o gravador inscrevia o seu nome no lado direito, ficando assim a obra duplamente autenticada.

Tudo isto vem a propósito de um artista cujo nome tenho encontrado repetidamente nas últimas semanas e acerca do qual existe muito pouca informação. Mais: a dado trecho, deixou-se de saber dele, desconhecendo-se inclusive onde e quando faleceu. Refiro-me a João Hilário Pinto de Almeida, autor dos desenhos das centenas de estampas que ilustram obras como “O Minho Pittoresco”, de José Augusto Vieira (1886-87), ou “Estado Actual das Pescas em Portugal, comprehendendo a pesca marítima, fluvial e lacustre em todo o continente do reino, referido ao anno de 1886”, do comandante António Arthur Baldaque da Silva (1892). Autênticas empreitadas artísticas, não só pela quantidade mas sobretudo pela qualidade, os trabalhos de ilustração destas obras ocuparam certamente o autor durante muito tempo, implicando diversas deslocações pelo país. No caso das ilustrações do “Estado Actual das Pescas…” nota-se alguma imprecisão de pormenor nos desenhos relativos ao norte do país, cujas respostas ao inquérito nacional sobre as pescas não terão chegado a Lisboa, obrigando a alguma improvisação generalista, mas o retrato do Minho no século XIX saiu preciso – e comovente, à distância de 127 anos.

Nascido em Arruda dos Vinhos no ano de 1847, João Almeida deve ter revelado vocação precoce para o desenho pois foi matriculado, aos 12 anos, na Aula de Desenho Histórico de Miguel Ângelo Lupi, como aluno voluntário. Cinco anos depois, em 1864, foi distinguido com o Accessit (3) ano concurso anual da Aula de Desenho Histórico, na secção de Desenho Vivo. Paralelamente, frequentou as aulas de Desenho de Arquitetura.

Terminados os estudos de Desenho, ingressou no Curso de Pintura Histórica. Em 1867, participou na 6ª Exposição da Sociedade Promotora de Belas Artes com pintura a óleo e começou a preparar uma obra de pintura para o concurso trienal da Aula de Pintura Histórica, que terminou em fevereiro de 1868. A obra foi rejeitada pelo júri e João Almeida desistiu do curso e não regressou à Academia.

Trabalhou como desenhador e ilustrador, colaborando em diversas publicações periódicas e ligando-se depois ao ensino técnico. Ilustrou em 1886 a obra em dois volumes “O Minho Pitoresco”, para a qual realizou mais de 300 desenhos, e depois “O Estado Actual das Pescas…” , também profusamente ilustrado. Esta obra é, na realidade, o relatório da comissão nomeada a 13 de maio de 1868 pelo Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, para se apurar a situação das pescas nacionais e o Comandante Baldaque de Silva era figura destacada nesse grupo de trabalho. As ilustrações de João Almeida são uma parte fundamental da obra, muito descritiva e baseada em dados concretos – pois o poder político tinha descoberto as virtudes dos inquéritos e das estatísticas – mas é provável que o artista tenha realizado esse trabalho como funcionário da Direção Geral do Comércio e Indústria, organismo de que dependia o ensino técnico. De resto, terá sido nomeado diretor da Escola Industrial Marquês de Pombal em 1888 pelo Diretor Geral do Comércio e Indústria de então, o Conselheiro Ernesto Madeira Pinto, destacado sócio fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa.

A história de João Hilário Pinto de Almeida perde-se aqui para quem gostaria de conhecê-la melhor, restando a notícia da sua nomeação a 26 de julho de 1889 “para visitar as escolas industriais francesas e estudar os métodos de ensino aí praticados” (4). Terá desistido da carreira artística para participar no desenvolvimento do ensino técnico e industrial em Portugal?

Apreciado como artista pelo que se conhece da sua obra, João Hilário Pinto de Almeida merecia ser mais conhecido - mas é bem possível que ele próprio tenha empreendido algum esforço para se ocultar da história. No "Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses", Fernando de Pamplona refere-se sumariamente a João Almeida, terminando com um enigmático “etc.”

Ilustração de João Almeida em "O Minho Pittoresco"

Ilustração de João Almeida em "Estado Actual das Pescas..."

Notas:

(1)-Ainda hoje isso acontece, quando há necessidade de mostrar imagens de acontecimentos que não foi possível fotografar, havendo artistas especializados em cenas de tribunal, por exemplo.

(2)-Não é por acaso que, ainda hoje, os termos desenho, ilustração, gravura ou estampa, passem quase por sinónimos na linguagem corrente, pois eles representam na realidade as várias fases do processo de reprodução de imagens através da(s) técnica(s) da gravura. Tudo começa com a necessidade de produzir uma imagem para ilustrar um dado texto, que o desenhador interpreta com mais ou menos liberdade criativa. Seguidamente, entra em campo o gravador para fixar o desenho numa placa de madeira, metal ou pedra – a matriz. Essa placa é depois tintada e o impressor estampa em papel a imagem que ela contém, utilizando uma prensa manual ou processos mecânicos industriais. Se a reprodução tiver carácter artístico, com supervisão do artista durante todo o processo e tiragens muito limitadas, o termo mais indicado é “gravura”. De outro modo, tratando-se de tiragens industriais, falamos de “estampas”.

(3)-A distinção atual mais próxima deste prestigiado prémio académico, hoje em desuso, é a Menção Honrosa.

(4)-Do conteúdo de uma carta de Cardoso Marta, disponível na internet.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Publicidade desenganada


 
Vincent Van Gogh, “Girassóis” (“Doze Girassóis Numa Jarra”, agosto de 1888)

Acompanhando os tempos, a publicidade aos eventos artísticos faz-se cada vez com mais impacto.

Depois da já célebre Mob num centro comercial de Amsterdão anunciando a reabertura do Rijksmuseum, uma exposição de réplicas de quadros célebres de Van Gogh  foi anunciada ASSIM com uma enorme reprodução do quadro “Girassóis” na escadaria de um centro comercial de Hong Kong, onde decorre a exposição.

A ideia não é original, lembra o que o artista francês JR fez na escadaria do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, que ficou ASSIM, mas tanto a Mob quanto o poster dos  "Girassóis” às fatias, têm em comum os holandeses, museus holandeses e centros comerciais. Dá que pensar.

A exposição chinesa tem o apoio do Museu Van Gogh, de Amsterdão e, para além da réplica dos girassóis, estarão expostos até ao dia 4 de agosto obras como "Amendoeira em Flor" e "Boulevard de Clichy".

Mas em matéria de grandeza, os alemães continuam à frente. Em 2008, 500 admiradores da obra de Wassily Kandinsky, sobretudo estudantes das escolas locais, pintaram sobre as 8 mil pedras do pavimento da principal praça da cidade de Weilheim  (2100 m2) uma reprodução gigantesca de uma tela de Kandinsky – que retratou essa mesma praça em 1909. A parte mais desafiante e trabalhosa foi mesmo o projeto e os participantes limitaram-se a pintar a praça pedrinha por pedrinha, de acordo com o plano. E a praça ficou ASSIM, vista do ar.

Talvez por causa do bem sucedido “projeto Kandinsky” em Weilheim é que agora, em Portugal, a lei só autoriza graffiti em locais públicos… com projeto aprovado!

Wassily Kandinsky, "Weilheim-Marienplatz", 1909

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Sobre a pintura de cenas marítimas, navios e batalhas navais

Nos 150 anos do Museu de Marinha (22 de julho 1863-2013)

Parte III – Saudades do Mar

António Delfim, “Navio Escola Sagres em Lisboa”, 2000, óleo s/tela - 1º Prémio de Pintura da Academia de Marinha em 2000

A Marinha portuguesa entrou no século XX com grande otimismo. A marinha mercante navegava “de vento em popa”, após a criação das grandes companhias de navegação no século XIX e a marinha de guerra sonhava com uma esquadra oceânica. Para dar corpo a essa “visão estratégica”, foram construídos e adquiridos novos navios e o primeiro submarino chegou a Portugal em 1913. Não houve tempo para mais. Pressionado pela situação internacional, o governo liderado por Afonso Costa mandou apresar 70 navios alemães que se encontravam em águas territoriais portuguesas, ousadia que levou a Alemanha a declarar guerra a Portugal em março de 1916. No entanto, a Marinha portuguesa não estava à altura das suas congéneres aliadas e perdeu prestígio para a aviação militar, a maravilha da época – que, curiosamente, ficou sob a alçada da Marinha até 1952.

Relegada para terceiro plano nos principais conflitos internacionais do século XX e na guerra colonial, apesar da sua participação meritória em inúmeras missões, a Marinha envolveu-se fortemente nas mais diversas áreas e atividades relacionadas com o mar, desde a investigação científica e tecnológica à cultura marítima e aos desportos náuticos, com destacada participação nos grandes eventos nacionais e internacionais que marcaram a história do século XX português – da Exposição Colonial no Palácio de Cristal do Porto em 1934 à Expo’98, passando pela Exposição Marítima do Norte de Portugal em 1939, Exposição do Mundo Português em Lisboa em 1940, XVII Exposição Europeia de Arte em 1983 e as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, de 1986 a 2002 – sem esquecer a Europália’91, na Bélgica, em que Portugal foi o país-tema. Um século agitado por variadas paixões “caseiras”, desde a paixão colonial à paixão pela educação – mas, como diz o ditado popular, “não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”.

As artes nacionais refletiram naturalmente esta agitação política e cultural, contribuindo com obras encomendadas ou espontaneamente, em iniciativas paralelas – sobretudo exposições individuais e coletivas. Pintores, desenhadores e aguarelistas como Souza Pinto, João Vaz, Roque Gameiro, Fausto Sampaio, Sousa Lopes, Cândido Teles, João Carlos Celestino Gomes, Eduardo Malta, Alberto Sousa, Alfredo de Morais, Artur Guimarães ou Telmo Gomes (1), entre outros, já vinham tomando o simples barco de pesca como assunto principal nos quadros, destacando globalmente as sua características formais (casco, tipo de vela) e colorido distintivo. Grande parte da sua obra pode ser encontrada nos vários (e excelentes) Museus nacionais ou municipais sobre o mar e as atividades marítimas (2). Nem todos foram, porém, dedicados pintores do género – como o setubalense João Vaz ou o ílhavo Cândido Teles – e a pintura de paisagens marinhas com barcos e navios ficou muito longe do que se fazia na Europa.

Entre os grandes pintores europeus de marinha e navios, destaca-se o francês Albert Brenet (1903-2005), nomeado Pintor da Marinha Nacional  francesa em 1936, Pintor do Ar (Força Aérea) em 1936 e pintor do Exército (1959). Outros grandes pintores franceses de marinhas no século XX foram  Marin-Marie (1901-1987) e Roger Chapelet (1903-1995). O Museu de Marinha português dispõe de uma pintura de Chapelet representando a “Fragata D. Fernando II e Glória”, a última nau da Índia e o último navio de guerra da Marinha portuguesa a navegar exclusivamente à vela.

O “Albert Brenet português” é o pintor e aguarelista Alberto Cutileiro (1915-2003), antigo Diretor do Museu de Marinha e autor de uma obra notável, de investigação e ilustração históricas. Algumas das suas principais pinturas a óleo e aguarelas encontram-se expostas no Museu de Marinha e foram reproduzidas em vários livros de referência, na Revista da Armada e outras publicações das Forças Armadas Portuguesas. Na verdade, destacou-se também na investigação e inventariação de uniformes militares, publicando a obra em 3 volumes “O Uniforme Militar na Armada – Três Séculos de História” (1983), profusamente ilustrado com aguarelas da sua autoria.

A valorização da cultura popular trazida pelo 25 de abril de 1974 (3) suscitou um crescente interesse pelas atividades tradicionais ligadas ao mar e aos rios portugueses, que já eram estudadas devotadamente pelo Arquiteto Octávio Lixa Filgueiras  (Foz do Douro, 1922-1996), entre outros (4). Estes esforços inseriam-se num movimento mais alargado de valorização, estudo e promoção do Património Cultural nacional, mais além dos tipicismos provinciais propostos pelo Estado Novo (casas e trajes típicos), com boa resposta dos ilustradores. A nova abordagem, por ser mais científica, suscitou um realismo mais preciso e direcionado da representação, um realismo documental com preocupações etnográficas – do qual Fernando Galhano (Porto, 1904-1995) é um bom exemplo, ilustrando sistematicamente a investigação de Ernesto Veiga de Oliveira. Galhano foi um elemento fundamental no grupo criado em 1947 por Veiga de Oliveira para renovar os estudos etnográficos em Portugal.

As preocupações neorrealistas de muitos artistas já haviam chamado à tela (na pintura mas também no cinema) a vida difícil dos pescadores nas praias e portos portugueses ou enfrentando tempestades no mar alto abraçando apenas a boia da devoção religiosa, ou quase perdidos nas brumas e águas geladas da Terra Nova, onde pescavam o bacalhau à linha a bordo de pequenas embarcações individuais, os “dóris”. São verdadeiros tesouros do cinema nacional filmes como “Douro, Faina Fluvial” (Manuel de Oliveira, 1931), “Ala Arriba!” (Leitão de Barros, 1942) ou “Nazaré” (Manuel de Guimarães, 1952) – que podem ser vistos acionando os respetivos links (5) – mas foram inúmeros os pintores que escolheram como tema a condição social do pescador português: Souza Pinto, Júlio Pomar, Avelino Cunhal, Augusto Gomes, Tomás de Melo, Guilherme Camarinha, entre outros.

A melhoria das condições económicas, a invasão das praias pelo turismo de verão e a caudalosa legislação comunitária que penalizou fortemente as atividades marítimas tradicionais, reduziram a pesca artesanal e as atividades agromarítimas a curiosidades turísticas, postal ilustrado e a cores de um país folclórico que na realidade já não existe. E seguindo a moda do postal ilustrado, a pintura imita a fotografia – como acontece (e bem) com as pinturas fotorrealistas de António Delfim. Nem por acaso, foi-lhe atribuído em 2000 o 1º Prémio de Pintura da Academia de Marinha – o braço cultural da Marinha Portuguesa.

Apesar das questões que possam ser colocadas relativamente às preocupações realistas da representação de navios e barcos após o aparecimento da fotografia a cores e dos milagrosos programas e aplicações informáticas para otimizar a informação visual nas fotografias digitais, acresce sublinhar a estreita ligação entre a investigação histórica – no caso, no âmbito da arqueologia naval – e o trabalho do ilustrador/artista. Se esse inventário visual, essa recolha documental mobilizando o desenho e a pintura, fazia sentido antes do aparecimento da fotografia, por serem então os únicos meios para recolher imagens da realidade envolvente, continua hoje a fazer sentido pois a fotografia existe mas os navios desapareceram. Muitas Câmaras Municipais, Museus e Associações têm promovido a recuperação e/ou a construção de réplicas de embarcações tradicionais (6), a criação de pequenos museus e núcleos museológicos, a realização de encontros temáticos, demonstrações náuticas e reconstituições históricas. Todos os esforços serão poucos para preservar o que ficou à nossa guarda, a mensagem que herdámos e que deve necessariamente passar aos nossos filhos e netos. Se mais não for, para sabermos o que se perdeu com o que ganhámos. Ou vice-versa.
SR
(Parte I - "Sobre a Pintura de Cenas Marítimas..."; Parte II - "Veleiros e Vapores"

João Vaz, Praia de Espinho, óleo s/tela

José Júlio de Souza Pinto, A Vinda dos Barcos, 1891, óleo s/tela

Guilherme Camarinha, Faina Fluvial no Douro, 1962, óleo s/tela

Alberto Sousa, Praia com Barco de Pescadores, 1953, aguarela

Cândido Teles, A Arte da Xávega, 1984, pintura sobre tela

Alberto Cutileiro, “Nau Frol de la Mar “ do séc. XVI, 1960, óleo s/tela, Messe de Oficiais de Cascais. A “Frol de la Mar” (Flor do Mar) era na realidade um galeão. Foi utilizada na carreira da Índia e nas conquistas de Goa e Malaca. Naufragou em 1511.

Roque Gameiro, Praia de Vieira de Leiria, aguarela

Humberto Santos, Barco junto da Ponte de Requeixo, arte digital. A ponte de Requeixo situa-se na confluência do rio Cértima com o rio Águeda

António Delfim, “Limpando o Barco”, óleo s/tela

Notas:

(1)-O arquiteto Telmo Gomes realizou várias exposições de pintura e ilustrou alguns livros sobre navios e navegação, com destaque para a sua obra “Navios Portugueses - Séculos XIV a XIX”, Edições Inapa, 1995.

(2)-Com destaque para o Museu de Marinha, que celebra 150 anos, e para o Museu Marítimo de Ílhavo, fundado em 1937. Entre os museus municipais, a título de exemplo, refiram-se o Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim, fundado por Santos Graça em 1937, o Museu Dr. Joaquim Manso na Nazaré, o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal e o Museu Etnográfico Regional de Faro.

(3)-O sucesso da Revolução deve-se à coragem e determinação dos Capitães de Abril mas, sobretudo, ao enorme apoio popular que se fez sentir nas ruas e inspirou a aliança Povo-MFA. Esta aliança informal, tida pelos militares como compromisso de honra e pelos partidos progressistas como base programática, consolidou-se desde logo com a satisfação das principais aspirações das classes desfavorecidas, através da melhoria das condições de vida, campanhas de alfabetização e diversas iniciativas de valorização e promoção da cultura popular.

(4)-A. Cabral Neves, A. Gomes da Rocha Madahil, António Santos Graça, D. José de Castro, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Luís de Magalhães, Manuel Silva, Vicente de Almeida d’Eça,…

 (5)-"Douro, Faina Fluvial" (1931); “Ala Arriba!" (1942); “Nazaré” (1952). Mas também o famoso “Maria do Mar” (Leitão de Barros, 1930), a primeira docficção portuguesa, ainda no tempo do cinema mudo, “Quando o Mar Galgou a Terra” (Henrique Campos, 1954) filmado na Ilha de São Miguel, Açores, e "Avieiros" (Ricardo Costa, 1975).

(6)-Por exemplo, a Junta de Freguesia de Lanheses (Barco d’Água Acima do Rio Lima, 2010), o Clube Naval Povoense e a CM da Póvoa de Varzim (Lancha poveira, 1991), Núcleo Museológico de Vila Chã, Vila do Conde (2 Catraias poveiras, 2011 e 2012), CM Nazaré (Barca do Galeão, Neta ou Barco da Xávega, Barco do Candil), CM do Montijo (Varino, 1981), CM do Barreiro (Varino), CM Seixal (Fragata), CM Sesimbra/Clube Naval de Sesimbra (Barca "Santiago", 1998), CM Alcácer do Sal e Reserva Natural do Estuário do Sado (3 Galeões do Sal); CM Olhão (Caíque “Bom sucesso”, 2002). Em muitos portos, inclusive na Madeira e Açores, várias empresas tên recuperado antigas embarcações de pesca e transporte para fins turísticos.