Nos 150 anos do Museu de Marinha (22 de julho 1863-2013)
Parte III
– Saudades do Mar
António
Delfim, “Navio Escola Sagres em Lisboa”, 2000, óleo s/tela - 1º Prémio de
Pintura da Academia de Marinha em 2000
A Marinha
portuguesa entrou no século XX com grande otimismo. A marinha mercante navegava
“de vento em popa”, após a criação das grandes companhias de navegação no
século XIX e a marinha de guerra sonhava com uma esquadra oceânica. Para dar
corpo a essa “visão estratégica”, foram construídos e adquiridos novos navios e
o primeiro submarino chegou a Portugal em 1913. Não houve tempo para mais. Pressionado
pela situação internacional, o governo liderado por Afonso Costa mandou apresar
70 navios alemães que se encontravam em águas territoriais portuguesas, ousadia
que levou a Alemanha a declarar guerra a Portugal em março de 1916. No
entanto, a Marinha portuguesa não estava à altura das suas congéneres aliadas e
perdeu prestígio para a aviação militar, a maravilha da época – que,
curiosamente, ficou sob a alçada da Marinha até 1952.
Relegada
para terceiro plano nos principais conflitos internacionais do século XX e na
guerra colonial, apesar da sua participação meritória em inúmeras missões, a
Marinha envolveu-se fortemente nas mais diversas áreas e atividades
relacionadas com o mar, desde a investigação científica e tecnológica à cultura
marítima e aos desportos náuticos, com destacada participação nos grandes
eventos nacionais e internacionais que marcaram a história do século XX
português – da Exposição Colonial no Palácio de Cristal do Porto em 1934 à
Expo’98, passando pela Exposição Marítima do Norte de Portugal em 1939,
Exposição do Mundo Português em Lisboa em 1940, XVII Exposição Europeia de Arte
em 1983 e as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, de 1986 a 2002 – sem
esquecer a Europália’91, na Bélgica, em que Portugal foi o país-tema. Um século
agitado por variadas paixões “caseiras”, desde a paixão colonial à paixão pela
educação – mas, como diz o ditado popular, “não há bem que sempre dure nem mal que
nunca acabe”.
As artes
nacionais refletiram naturalmente esta agitação política e cultural,
contribuindo com obras encomendadas ou espontaneamente, em iniciativas
paralelas – sobretudo exposições individuais e coletivas. Pintores,
desenhadores e aguarelistas como Souza Pinto, João Vaz, Roque Gameiro, Fausto
Sampaio, Sousa Lopes, Cândido Teles, João Carlos Celestino Gomes, Eduardo
Malta, Alberto Sousa, Alfredo de Morais, Artur Guimarães ou Telmo Gomes (1), entre
outros, já vinham tomando o simples barco de pesca como assunto principal nos
quadros, destacando globalmente as sua características formais (casco, tipo de
vela) e colorido distintivo. Grande parte da sua obra pode ser encontrada nos
vários (e excelentes) Museus nacionais ou municipais sobre o mar e as
atividades marítimas (2). Nem todos foram, porém, dedicados pintores do género
– como o setubalense João Vaz ou o ílhavo Cândido Teles – e a pintura de
paisagens marinhas com barcos e navios ficou muito longe do que se fazia na
Europa.
Entre os
grandes pintores europeus de marinha e navios, destaca-se o francês Albert
Brenet (1903-2005), nomeado Pintor da Marinha Nacional francesa em 1936, Pintor do Ar (Força Aérea)
em 1936 e pintor do Exército (1959). Outros grandes pintores franceses de
marinhas no século XX foram Marin-Marie
(1901-1987) e Roger Chapelet (1903-1995). O Museu de Marinha português
dispõe de uma pintura de Chapelet representando a “Fragata D. Fernando II e
Glória”, a última nau da Índia e o último navio de guerra da Marinha portuguesa
a navegar exclusivamente à vela.
O “Albert
Brenet português” é o pintor e aguarelista Alberto Cutileiro (1915-2003), antigo
Diretor do Museu de Marinha e autor de uma obra notável, de investigação e
ilustração históricas. Algumas das suas principais pinturas a óleo e aguarelas encontram-se
expostas no Museu de Marinha e foram reproduzidas em vários livros de
referência, na Revista da Armada e outras publicações das Forças Armadas
Portuguesas. Na verdade, destacou-se também na investigação e inventariação de
uniformes militares, publicando a obra em 3 volumes “O Uniforme Militar na
Armada – Três Séculos de História” (1983), profusamente ilustrado com aguarelas
da sua autoria.
A
valorização da cultura popular trazida pelo 25 de abril de 1974 (3) suscitou um
crescente interesse pelas atividades tradicionais ligadas ao mar e aos rios
portugueses, que já eram estudadas devotadamente pelo Arquiteto Octávio Lixa
Filgueiras (Foz do Douro, 1922-1996), entre outros (4). Estes esforços
inseriam-se num movimento mais alargado de valorização, estudo e promoção do
Património Cultural nacional, mais além dos tipicismos provinciais propostos
pelo Estado Novo (casas e trajes típicos), com boa resposta dos ilustradores. A
nova abordagem, por ser mais científica, suscitou um realismo mais preciso e direcionado
da representação, um realismo documental com preocupações etnográficas – do
qual Fernando Galhano (Porto, 1904-1995) é um bom exemplo, ilustrando
sistematicamente a investigação de Ernesto Veiga de Oliveira. Galhano foi um
elemento fundamental no grupo criado em 1947 por Veiga de Oliveira para renovar
os estudos etnográficos em Portugal.
As
preocupações neorrealistas de muitos artistas já haviam chamado à tela (na
pintura mas também no cinema) a vida difícil dos pescadores nas praias e portos
portugueses ou enfrentando tempestades no mar alto abraçando apenas a boia da
devoção religiosa, ou quase perdidos nas brumas e águas geladas da Terra Nova,
onde pescavam o bacalhau à linha a bordo de pequenas embarcações individuais,
os “dóris”. São verdadeiros tesouros do cinema nacional filmes como “Douro,
Faina Fluvial” (Manuel de Oliveira, 1931), “Ala Arriba!” (Leitão de Barros,
1942) ou “Nazaré” (Manuel de Guimarães, 1952) – que podem ser vistos acionando
os respetivos links (5) – mas foram inúmeros os pintores que escolheram como
tema a condição social do pescador português: Souza Pinto, Júlio Pomar, Avelino
Cunhal, Augusto Gomes, Tomás de Melo, Guilherme Camarinha, entre outros.
A melhoria
das condições económicas, a invasão das praias pelo turismo de verão e a
caudalosa legislação comunitária que penalizou fortemente as atividades
marítimas tradicionais, reduziram a pesca artesanal e as atividades
agromarítimas a curiosidades turísticas, postal ilustrado e a cores de um país
folclórico que na realidade já não existe. E seguindo a moda do postal
ilustrado, a pintura imita a fotografia – como acontece (e bem) com as pinturas
fotorrealistas de António Delfim. Nem por acaso, foi-lhe atribuído em 2000 o 1º
Prémio de Pintura da Academia de Marinha – o braço cultural da Marinha
Portuguesa.
Apesar das
questões que possam ser colocadas relativamente às preocupações realistas da
representação de navios e barcos após o aparecimento da fotografia a cores e dos
milagrosos programas e aplicações informáticas para otimizar a informação
visual nas fotografias digitais, acresce sublinhar a estreita ligação entre a
investigação histórica – no caso, no âmbito da arqueologia naval – e o trabalho
do ilustrador/artista. Se esse inventário visual, essa recolha documental
mobilizando o desenho e a pintura, fazia sentido antes do aparecimento da
fotografia, por serem então os únicos meios para recolher imagens da realidade
envolvente, continua hoje a fazer sentido pois a fotografia existe mas os
navios desapareceram. Muitas Câmaras Municipais, Museus e Associações têm
promovido a recuperação e/ou a construção de réplicas de embarcações
tradicionais (6), a criação de pequenos museus e núcleos museológicos, a
realização de encontros temáticos, demonstrações náuticas e reconstituições
históricas. Todos os esforços serão poucos para preservar o que ficou à nossa
guarda, a mensagem que herdámos e que deve necessariamente passar aos nossos
filhos e netos. Se mais não for, para sabermos o que se perdeu com o que
ganhámos. Ou vice-versa.
SR
(Parte I - "Sobre a Pintura de Cenas Marítimas..."; Parte II - "Veleiros e Vapores"
João
Vaz, Praia de Espinho, óleo s/tela
José
Júlio de Souza Pinto, A Vinda dos Barcos, 1891, óleo s/tela
Guilherme
Camarinha, Faina Fluvial no Douro, 1962, óleo s/tela
Alberto
Sousa, Praia com Barco de Pescadores, 1953, aguarela
Cândido
Teles, A Arte da Xávega, 1984, pintura sobre tela
Alberto
Cutileiro, “Nau Frol de la Mar “ do séc. XVI, 1960, óleo s/tela, Messe de
Oficiais de Cascais. A “Frol de la Mar” (Flor do Mar) era na realidade um
galeão. Foi utilizada na carreira da Índia e nas conquistas de Goa e Malaca.
Naufragou em 1511.
Roque
Gameiro, Praia de Vieira de Leiria, aguarela
Humberto Santos, Barco junto da Ponte de Requeixo, arte digital. A ponte de Requeixo situa-se na confluência do rio Cértima com o rio Águeda
António
Delfim, “Limpando o Barco”, óleo s/tela
Notas:
(1)-O
arquiteto Telmo Gomes realizou várias exposições de pintura e ilustrou alguns
livros sobre navios e navegação, com destaque para a sua obra “Navios
Portugueses - Séculos XIV a XIX”, Edições Inapa, 1995.
(2)-Com
destaque para o Museu de Marinha, que celebra 150 anos, e para o Museu Marítimo
de Ílhavo, fundado em 1937. Entre os museus municipais, a título de exemplo,
refiram-se o Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de
Varzim, fundado por Santos Graça em 1937, o Museu Dr. Joaquim Manso na
Nazaré, o Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito
de Setúbal e o Museu Etnográfico Regional de Faro.
(3)-O
sucesso da Revolução deve-se à coragem e determinação dos Capitães de Abril
mas, sobretudo, ao enorme apoio popular que se fez sentir nas ruas e inspirou a
aliança Povo-MFA. Esta aliança informal, tida pelos militares como compromisso
de honra e pelos partidos progressistas como base programática, consolidou-se
desde logo com a satisfação das principais aspirações das classes
desfavorecidas, através da melhoria das condições de vida, campanhas de
alfabetização e diversas iniciativas de valorização e promoção da cultura
popular.
(4)-A.
Cabral Neves, A. Gomes da Rocha Madahil, António Santos Graça, D. José de
Castro, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Luís de Magalhães, Manuel
Silva, Vicente de Almeida d’Eça,…
(6)-Por
exemplo, a Junta de Freguesia de Lanheses (Barco d’Água Acima do Rio Lima,
2010), o Clube Naval Povoense e a CM da Póvoa de Varzim (Lancha poveira, 1991),
Núcleo Museológico de Vila Chã, Vila do Conde (2 Catraias poveiras, 2011 e 2012),
CM Nazaré (Barca do Galeão, Neta ou Barco da Xávega, Barco do Candil), CM do
Montijo (Varino, 1981), CM do Barreiro (Varino), CM Seixal (Fragata), CM Sesimbra/Clube Naval de Sesimbra (Barca "Santiago", 1998), CM Alcácer do Sal e Reserva Natural do Estuário do Sado (3 Galeões do Sal); CM Olhão
(Caíque “Bom sucesso”, 2002). Em muitos portos, inclusive na Madeira e Açores,
várias empresas tên recuperado antigas embarcações de pesca e transporte para
fins turísticos.