Assinalando os 125 anos da fundação da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, decorre até final de Agosto no Palácio do Gelo, em Viseu, uma exposição (1) de obras de cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro. No início de Abril de 2009, a Visabeira, empresa proprietária do Palácio do Gelo, adquiriu a Fábrica de Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Lda. Esta empresa (2), também conhecida por “San Rafael”, foi criada em 1908 pelo filho de Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo, para dar continuidade à primitiva empresa.
Trabalhadores da Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, com Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro ao centro, atrás dos três aprendizes. Foto do blogue de João B. Serra
Os Bordalo Pinheiro nas Artes
Quando deparo com o nome de Rafael Bordalo Pinheiro, de Columbano ou de Maria Augusta Bordalo Pinheiro lembro-me imediatamente do pai, Manuel Maria Bordalo Pinheiro (Santa Justa, Lisboa, 28/11/1815-Lisboa, 31/01/1880), funcionário público e “artista amador”.
Como funcionário público, Manuel Maria chegou a chefe de repartição na secretaria da Câmara dos Pares. Como artista, chegou a Sócio de Mérito da Academia Real de Belas-Artes. Entre 1849 e 1851, realizou importantes visitas de estudo a Madrid, Paris e Londres, as primeiras das quais ao serviço do influente Marquês – depois Duque - de Palmela, D. Pedro de Sousa Holstein (1781-1850). Essas viagens mudaram a orientação da sua pintura, trazendo até uma nova luz ao Romantismo português, “dando-nos obras curiosas (…) que abriram caminho às novas correntes pictóricas e ultrapassaram o estafado convencionalismo do tempo” (3) Algumas das suas obras foram premiadas em exposições no estrangeiro. Foi ainda gravador, contribuindo para o renascimento da gravura em madeira, e escultor. É o autor, por exemplo, do busto de Camões que se encontra na famosa gruta, em Macau. Ver obras digitalizadas de Manuel Maria Bordallo Pinheiro na BNP.
O lado mais formal e codificado do seu convívio com as maiores figuras da política e da intelectualidade portuguesa de então (retratou políticos e militares, granjeou a admiração e protecção do Marquês de Palmela e colaborou com Alexandre Herculano na fundação do Panorama) viria a manifestar-se no seu filho Columbano, que se comportava como um aristocrata das artes e retratou a intelectualidade do seu tempo. Mas outra faceta da sua obra ajuda a compreender a preferência do filho mais velho, Rafael Bordalo Pinheiro, pela caricatura satírica, já que Manuel Maria se divertia a criar pequenos quadros histórico-anedóticos, tendo produzido ilustrações para jornais do seu tempo e desenhado trajes e figurinos para o Teatro de S. Carlos e D. Maria.
Manuel Maria Bordalo Pinheiro teve nove filhos, três dos quais não só herdaram o seu gosto pelas artes como tiveram o génio de o desenvolverem: Maria Augusta e Rafael Augusto, os primeiros filhos, e Columbano. Cada um deles, de acordo com a sua índole, alcançou inegável sucesso em áreas distintas da Arte.
Apesar da sua condição feminina, então limitadora das aspirações públicas das mulheres, Maria Augusta de Prostes Bordalo Pinheiro (Lisboa, 14/11/1841-22/10/1915) foi uma exímia pintora naturalista mas distinguiu-se particularmente nas artes aplicadas. A ela se deve a recuperação das rendas de Peniche, que haviam caído em desuso, promovendo-as a ponto de conquistar prémios internacionais com trabalhos de sua autoria, em certames como a Exposição Internacional de Antuérpia (medalha de ouro, 1894) e Exposição Internacional de S. Luís, EUA (grande prémio, 1904). Colaborou nas actividades artísticas dos seus irmãos, ajudando Rafael (com Ramalho Ortigão) a fundar a fábrica de faiança nas Caldas da Rainha, onde também foi pintora de faiança, e acompanhou Columbano quando este foi estudar para Paris, servindo-lhe de modelo para alguns dos seus quadros, sobretudo em “A luva cinzenta” e “Concerto de amadores”.
.
Rafael Bordalo Pinheiro por Herculano Elias, outro grande ceramista das Caldas
De espírito boémio, extrovertido e polémico, Rafael Augusto Prostes Bordalo Pinheiro (Lisboa, 21/03/1846-23/01/1905) decidiu dedicar-se às artes após uma fugaz passagem pelo funcionalismo. Foi o mais perspicaz e acutilante caricaturista português do século XIX, autor de uma importante obra gráfica na qual avulta a criação do Zé Povinho. Em 1884, fundou a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, onde criou variadas peças de cerâmica inspiradas nas formas e cores da natureza – cujos moldes ainda continuam a ser usados na Fábrica de Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Lda.
A figura do Zé Povinho faz hoje parte do imaginário nacional
Columbano Bordalo Pinheiro (Almada, 21/11/1857-Lisboa, 06/11/1929), intelectual e introvertido, marcou a pintura naturalista de finais do século XIX e início do século XX. Sobretudo pintor de composição e de figura, Columbano soltava no intimismo de uma penumbra doce os lampejos psicológicos das suas personagens, construindo retratos intensos mas solitários. A sua paleta única, privilegiando os negros, cinzentos, castanhos e o verde (à Velázquez), desdobrava-se em tons infindáveis nas sombras dos quadros, para as animar subtilmente no todo da orquestração da cena. O génio de Columbano foi descoberto por D. Fernando, o rei artista, e apoiado inicialmente pela Condessa de Edla, que financiou os seus estudos em Paris (1881-1883). Aí conquistaria, em 1900, a mais importante distinção internacional da Exposição Universal de Paris (medalha de ouro), que lhe abriu as portas de muitas instituições portuguesas mas embraveceu os seus rivais e inimigos. A idade acentuou o seu carácter introvertido e o artista encerrou-se num mundo próprio, a meia-luz, desconfiado e egoísta. Apesar de ter leccionado pintura na Escola de Belas-Artes de Lisboa entre 1900 e 1924, não deixou seguidores da sua obra pois considerava intransmissíveis os seus métodos e processos pictóricos.
.
Columbano Bordalo Pinheiro "A Luva Cinzenta", 1881, retratando a irmã, Maria Augusta, em Paris
Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro (1867-1920), filho e discípulo de Rafael, distinguiu-se também como caricaturista e ceramista, tendo criado juntamente com seu pai uma escola de ceramistas nas Caldas. Após a morte de Rafael, conseguiu vencer as dificuldades que surgiram (4) e dar continuidade ao seu trabalho. Porém, nunca conseguiu sair da sombra do seu génio, chegando a considerar-se a si próprio “a pior obra de meu pai”.
Notas
.
(2)-A empresa Fábrica de Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro compreende duas unidades de produção: a fábrica de loiça utilitária e uma outra que reproduz as peças originais de Rafael Bordalo Pinheiro.
(3)-Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses, Fernando de Pamplona, volume I, pág. 222 e 223, Livraria Civilização Editora.
(4)-Em 1906, foi exigida pelo Banco de Portugal o pagamento de uma dívida antiga. O edifício da fábrica foi penhorado em 1907 e vendido em hasta pública no início de 1908, com todo o recheio, incluindo os moldes originais de Rafael Bordalo Pinheiro, o que deu origem a uma disputa judicial.